Um brilho a mais
Juliana S. Marton
Ele descia vagarosamente a rua. Enquanto caminhava, repassava em sua memória todos os detalhes daquela noite inacreditável ao lado de sua idolatrada noiva. Era a primeira vez que o convidavam para um jantar em família, como o futuro sogro enfatizara com satisfação. Pedro era um sonho. O genro que toda mãe pede a Deus e que Isabel havia tido a grande sorte de encontrar em uma feira de livros usados tempos atrás.
Agora ele percorria a alameda que circundava a quadra em que a família de Isabel morava. Uma bela vizinhança, pensava ele. Quando chegava a esquina oposta à casa da família, viu de relance um pouco mais à frente um vulto esfumaçado que logo se dissipou no ar. Pedro, entretanto, não deu atenção àquilo, as estrelas é que ocupavam seu pensamento naquele momento.
Aquelas luzes perfeitas salpicavam o céu negro de maneira encantadora e hipnotizante. Nenhuma nuvem cobria a imensidão acima de sua cabeça e a lua sequer tinha colocado a cara para fora. A noite estava iluminada por milhares de pequenos pontinhos de diamante que Pedro desejava alcançar. A luz dos pequenos pontos piscava num ritmo, Pedro passou a notar. Uma melodia feita de luz e luz. Impenetrável e enigmática.
Caminhando com as mãos sob a cabeça, como que deitado sobre os braços cruzados atrás da nuca, Pedro foi retirado de seu devaneio por uma vozinha esganiçada ao chegar à outra esquina da pequena rua que realizava o encontro entre a curvilínea alameda e a avenida principal, onde ele pegaria a última lotação.
– Realmente, estão lindas.
Pedro parou de repente e olhou bem para aquele monte de panos velhos que se amontoavam num formato semelhante a uma pessoa. Olhou mais atentamente, pensando se não teria falado alto o que lhe vinha à mente e, aturdido pela beleza da noite, confundira-se com sua própria voz.
Todavia, os trapos mexeram-se e fizeram com que Pedro recuasse um pouco. Lá estava um velho mendigo, sujo e maltrapilho. Sentado. Olhando diretamente para ele. Com um sorriso amarelecido e melancólico, o velho ergueu seus olhos pequenos para Pedro, que observava atentamente aquele homem desajeitado.
– Lembro-me bem da última vez que elas brilharam como pequenos diamantes, Pedro. Foi, de fato, uma noite singular.
Pedro, agora além de confuso com a presença inesperada do homem, estava assustado. Pensara que fosse apenas um velho que lhe pediria algumas moedinhas para o trago diário. Mas, ele o chamara pelo nome e proferira palavras que Pedro não conseguia compreender.
– Como você sabe meu nome? – Pedro soltou as palavras com assombro em sua voz.
A – Ah, seu nome... – O velho começou a se levantar com cuidado, apoiando-se a uma bengala que estava jogada ao seu lado, a qual Pedro ainda não havia reparado a existência. Colocando-se de pé com visível dificuldade, o velho caminhou em direção ao jovem que estava paralisado pela estranheza da situação que se desenvolvia ali. Com dois tapinhas nas costas, o homem terminou a frase, despedindo-se de Pedro e iniciando um passo lento em direção à alameda da qual Pedro viera. – Seu nome está escrito em seus olhos, meu filho. E ninguém pode ocultar o que os olhos falam...
Pedro ainda ficou ali inerte por alguns minutos recusando-se a olhar para trás, onde certamente avistaria o estranho homem que o abordara naquela noite de luzes. Quando se permitiu sair do transe, voltou lentamente seu rosto para trás e viu o velho já longe, quase na alameda pela qual passara tantas vezes sem surpresas. Ouviu que o maltrapilho lhe falava novamente, e suas palavras apesar de distantes, soavam claras e, intimamente, audíveis.
– Aquela porção de pudim a mais, certamente, poderá custar-lhe mais do que a última lotação. Continue seu caminho, Pedro. Não dê ouvidos a elas.
A voz do velho se extinguiu assim como sua figura desapareceu após a esquina. Pedro não conseguia entender o que se passara ali e começava a cogitar a idéia de que alguém estivesse fazendo alguma brincadeira muito sem graça com ele. Olhou para os lados com desconfiança, esperando alguém pular dos cantos escuros da rua, anunciando a grande zombaria à que ele fora submetido. Esperou alguns minutos perscrutando as quinas mal iluminadas da ruazinha.
Nenhum som.
Nada.
Nem mesmo outro amontoado de trapos se via.
Um calafrio percorreu-lhe todo o corpo. Virando-se, deu de ombros ante o ocorrido e tomou novamente seu caminho em direção a larga avenida que o esperava logo à frente. Olhou no relógio, os ponteiros marcavam precisamente 23h58. A lotação passaria às 00h05. Precisava acelerar o passo, ou suas pernas seriam incumbidas de uma dura tarefa. Olhou para o céu. As estrelas continuavam lá. Belas. Refulgentes. Como diamantes recém dilapidados, brilhando naquele ritmo tão singular.
Enfim, alcançou a larga avenida pela qual vinha o coletivo. Pedro até pensara em pegar o metrô, mas andar mais algumas quadras não o animava.
– Vai dar tempo! – Falou baixo, numa voz que somente ele pudesse ouvir, num tom de ânimo.
Andando de forma acelerada, Pedro já podia visualizar a parada do ônibus. Alguém também esperava.
– Perfeito. Não perdi a condução. – Disse a si e acelerou um pouco mais o passo.
Mesmo andando depressa, Pedro começou a sentir frio. A cidade estava gelada naquela época do ano, mas essa brisa que agora penetrava pelas frestas de sua jaqueta de couro e subia por suas pernas compridas era estranho. Logo, uma sensação de dormência começou a tomar conta das extremidades de seu corpo e uma névoa fina desceu sobre a avenida. A pessoa que ele avistara antes ainda esperava a lotação na parada e Pedro, aproximando-se cada vez mais, podia ver que era uma mulher ali.
A figura da moça crescia cada vez mais diante dos olhos de Pedro. Apesar da névoa que agora esbranquiçava tudo a sua volta, ainda podia visualizar com clareza a mulher que ali continuava parada e, olhando para cima, ainda via o céu muito negro com seus pontinhos de luz.
Pedro caminhava mais rápido, a fim de chegar depressa ao abrigo e poder aguardar o coletivo que logo passaria por ali. Olhou de relance para trás, mas nada pôde ver. A névoa encobrira tudo completamente. Pedro mal podia ver o canteiro central da larga avenida. Voltou a cabeça novamente para frente. Agora estava a poucos passos da parada e podia ver com clareza a mulher que estava ali.
Ela que antes observava inerte e parecia não perceber a chegada lenta de Pedro, olhou de repente para ele, com toda imponência que sua figura transparecia ao jovem. Pedro ficou extasiado com aqueles olhos, negros como a noite e com um brilho tão profundo que congelava todo o seu ser.
Era linda. Divinamente bela. Seu cabelos muito escuros desciam por suas costas em longas e grossas madeixas brilhantes. Algumas mechas caiam-lhe pelo rosto fino, emoldurando-o como a uma bela pintura. Dona de uma pele tão alva, que Pedro podia jurar emanava luz própria misturada a um perfume que ele jamais sentira antes. Ela se erguia diante de Pedro como uma estátua esculpida em mármore. Fria. Mas ao mesmo tempo, era agradável aos olhos e sua presença despertava nele um prazer impetuoso que jamais sentira antes.
Parecia uma estrela em corpo de mulher. Estava cingida por um vestido branco muito esvoaçante. Que parecia dançar conforme a música que ela ordenava. Seus lábios rubros eram convidativos e exprimiam uma música inaudível. A névoa erguia-se ao seu redor, como sentinelas que a guardavam em seu mundo próprio onde era senhora de tudo e de todos.
Pedro sentia-se agora parte desse universo paralelo. Em seu íntimo sentia-se totalmente devotado a ela. Uma figura de preciosa beleza da qual Pedro não conseguia mais desviar seu brando olhar. Ainda alguns passos de distância, Pedro andava em direção a ela, enquanto a dama olhava-o com uma frieza morna e convidativa.
Mais rápido do que esperava, Pedro alcançou o lugar onde a musa encontrava-se. Totalmente paralisado olhava com adoração para aquela figura imponente e mágica bem posta em frente a ele. Pedro tinha a impressão que seus delicados pés sequer tocavam o chão. A névoa brincava com sua senhora. Ela o olhava com intensidade agora e ele sentia que não poderia desviar a vista dela.
Estava fascinado.
Ela era dele.
Pedro viu então de relance um brilho diferente atravessar o olhar da dama. Novamente aquele calafrio passou por seu corpo e ele subitamente lembrou-se do velho e de suas palavras. Não as compreendia.
O pudim.
Havia alguém lá.
Uma voz que ele amava.
Desviou seu olhar da mulher por um instante e ela então passou sua mão gélida por seu rosto dormente e trouxe-o de volta para ela. Agora seus olhos brilhavam inexoravelmente como as estrelas que Pedro vira antes naquele céu negro. Apesar do arrepio que lhe transpassou o corpo quando ela impetuosamente tocou seu rosto, Pedro agora sentia um calor agradável tomar conta de todo seu ser.
O frio não podia alcançá-lo mais, apesar de ainda sentir sua presença enfadonha. Pedro sentia que ela o levara para seu mundo.
Ele e ela.
Ficaram ali por um tempo longo demais, curto demais. Pedro não podia precisá-lo. Sentia a mão de sua senhora em seu rosto num afago imóvel. De repente, uma brisa fresca e quente começou a abraçá-los. As vestes esvoaçantes da dama, agora dançavam mais do que nunca e Pedro sentia-se inebriado por aquele perfume que aquele sopro leve trazia consigo.
O jovem começou então a ouvir uma doce melodia que parecia trazida de lugares distantes dali. Uma canção tão suave que Pedro extasiava-se ao ouvir cada nota entoada pelas vozes sem donos. A névoa ainda era espessa ao redor deles. Mas, sua senhora era real, ele podia sentir mais do que nunca aquela mão fria mornamente posta em sua face.
Pedro sentia-se inteiramente conectado àquela figura. Seu corpo parecia mais leve. E agora eram seus próprios pés que não tocavam mais o chão. Uma sensação de prazer enchia-lhe por completo e ele sentia seu corpo flutuar com a brisa suave em meio à névoa espessa e congelante. Era como se os dois dançassem conforme uma música que somente eles pudessem ouvir.
Pedro fechou seus olhos e, jogando a cabeça para trás, mergulhou inteiramente na melodia que o envolvia. O mundo, ele podia sentir, girava ao seu redor. E mesmo com as pálpebras cerradas sentia o intenso olhar da linda dama queimar em seu rosto. Abriu os olhos, num gesto de atrevimento, e olhou para as estrelas.
A música que a brisa trouxe.
Aquela melodia linda e envolvente.
Eram as estrelas. Elas cantavam. Entoavam aquele cântico tão suave e, mesmo assim, furiosa.
Voltou a fechar seus olhos. Acompanhava a canção das lindas estrelas que pontilhavam o céu negro lá em cima. Sua senhora acompanhava a música, agora. Sua voz era doce e cristalina. Pedro tentava entender as palavras que aquela boca que ele apreciara tanto proferia, mas não conseguia entender. Sentia-se enfeitiçado pelo efeito que cada nota da canção alcançava em seu interior, mesmo sem compreender o que a musa e suas súditas diziam.
Ele não queria sair dali nunca mais. Não conseguia se lembrar de mais nada que não fossem aqueles preciosos minutos de inércia diante da mulher. Sua mente agora só se ocupava de pensar nela. E tempo nenhum era suficiente para ele. Desejava estar com ela, para sempre. Mesmo que fosse só para admirá-la ou, até mesmo, só para sentir que ela estava ao alcance de seus pensamentos dirigidos.
Pedro enfim abriu os olhos para observá-la. Ela fazia o mesmo. Aqueles olhos negros penetraram nos seus. Ela parara de cantar. Seus lábios frios estavam bem postos num sorriso imaculado e invisível. Pedro a olhava com avidez, tentando decifrar algo naquele rosto cheio de uma expressão irreconhecível, que ele não conseguia ler.
Foi a dama que quebrou aquele momento de contemplação mútua. Sem desviar o olhar, nem sequer piscar, ela disse pausadamente, numa voz aguda, sensível e poderosa:
– Vem agora – seus olhos eram insaciáveis e brilhavam como nunca. – Vem comigo. Juntos. Não é isso o que você quer? Seus olhos dizem que sim.
Ela segurava-o pela mão, com uma delicadeza muito firme. Pedro sentia-a totalmente. Ele podia ver dentro de seus olhos. A verdade que se ocultara durante seu encontro bem dentro daqueles belos olhos que o hipnotizavam agora. Ele estava totalmente inerte. Era como se sua vontade estivesse dividida em dois. Uma parte queria correr daqueles olhos cruéis e frios que o afastariam de alguém.
Quem?
Alguém chorava, ele podia sentir.
Ele não conseguia mais se lembrar de nada. Seu pensamento estava completamente tomado pela névoa e pelos olhos dela. Seus lábios se moviam novamente e as palavras mudas que saiam de sua boca, ecoavam como música no pensamento de Pedro. Aquela sensação de prazer irremediável voltava e o levava de volta à musa.
– Vamos, Pedro. Está na hora – sua voz era suave e autoritária. Pedro não conseguia fugir dela. – Devemos partir já.
Pedro, mesmo que desejasse, não conseguiria mais desviar o olhar dela. Suas ações não lhe pertenciam mais. Subiu na lotação.
Ele era dela.
Conto fantástico produzido em fevereiro de 2010.
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