terça-feira, 25 de maio de 2010

Meu conto 3

conto
Contrato de casamento
por Juliana S. Marton

Ela se virou para o outro lado da cama e acordou de repente com os olhos de João Paulo encarando-a no escuro. Soltou um leve suspiro e se aconchegou sob o braço em que ele recostava sua cabeça.


– Estava tão cansada que decidi dormir. Quando você chegou? – Sua voz mal saia dos lábios e seus olhos permaneciam fechados.

– Há pouco – respondeu passando a mão pelos cabelos da esposa. Alice abriu de leve os olhos e contemplou o marido há poucos centímetros de seu rosto.

– O que você estava fazendo aí no escuro, meu bem?

– Observando você. De repente me dei conta do quanto você é bela e de como essa beleza é vulnerável – afagou novamente os cabelos da esposa que voltou a fechar os olhos.

– Que conversa mais estranha, João Paulo. Está tudo bem com você, imagino... – seu ar era leve e despreocupado. Virou-se para olhar o relógio que estava na cômoda ao lado da cama. – O que você esteve fazendo até essa hora, afinal?

João Paulo sorriu para a esposa. Alice abriu os olhos e o encarou esperando a resposta. O quarto era iluminado apenas pelas luzes dos postes lá fora. Mas, os olhos de João Paulo brilhavam a meia luz.

– Matei uma pessoa – disse com naturalidade.

Alice sentou-se imediatamente e bateu a mão no interruptor.

– O que você disse, meu bem? – perguntou ao marido. Ele a encarava da mesma forma, ainda.

– Matei uma pessoa, querida. E você é a minha cúmplice, claro.

Alice encarou-o e perscrutou cada centímetro de seu marido antes de voltar a falar. Ele estava desalinhado, ela podia ver. Nada que fugisse à rotina das longas noites de trabalho no tribunal. Ela se aproximou mais dele e pegando seu rosto largo em suas mãos, deu-lhe um beijo.

– Oh, querido. Não tem problema... – seu timbre fino era baixo. – Tudo bem, eu entendo. Isso acontece comigo, às vezes. Venha cá – e abraçando-o, beijou-lhe outra vez.

João Paulo confortou-se no abraço da esposa.

– Sabia que você entenderia, minha querida.

– Claro que sim – e deixando o abraço – agora podemos voltar a dormir? Garanto que você não terá mais pesadelos esta noite, meu bem – seu olhar compreensivo pousou em João Paulo. – Ninguém matou ninguém e nada de mal nos acontecerá.

João Paulo segurou o braço da esposa, quando ela se virava para apagar as luzes do quarto.

– Na verdade, alguém morreu, sim. E eu o matei.

A respiração de Alice pareceu ficar pesada de repente.

– Podemos encarar como um pesadelo, claro. Se isto torna mais fácil para você, querida. Mas, o único sonho que tenho todas as noites envolve você e uma praia, você sabe... – as últimas palavras de João Paulo vieram acompanhadas de um sorriso malicioso.

– Do que você está falando? – os olhos pequenos de Alice dobraram de tamanho. João Paulo deitou-se nos travesseiros azuis.

– Está claro do que eu estou falando desde que me perguntou o que eu fazia, meu bem – João Paulo segurou a mão da mulher. – E disse que matei uma pessoa, é claro.

Os lábios de Alice tremiam. O marido trouxe a mão para o centro de seu peito ainda cingido com uma camisa e uma gravata afrouxada.

– Amor, você está começando a me assustar – Alice apertou a mão do marido. – Isto tudo é uma brincadeira, certo?

Puxou a mão que ele segurava com firmeza e se levantou da cama quente.

– Que piada de mau-gosto, João Paulo. Será que tem necessidade de me acordar às duas e meia da madrugada para me encher com histórias alucinadas? – Alice parou diante da porta do banheiro. – Quando voltar do banheiro, eu espero que você tenha uma historinha melhor para me contar, ou então que esteja, pelo menos, dormindo – fechou a porta atrás de si.

João Paulo apagou as luzes e deitou-se novamente. Logo Alice veio e se deitou ao seu lado. Ele a abraçou.

– Que bom que você esqueceu essa brincadeira, querido.

– Não é uma brincadeira, Alice.

A esposa virou-se para ele.

– João Paulo... chega, por favor. Essa conversa já está me causando arrepios. Se você queria brincar, já foi de bom tamanho.

Alice agora o olhava com súplica. João Paulo afagou-lhe os cabelos e a trouxe mais para perto.

– Eu sei, amor. Mas, esta é a verdade – ele olhou para ela com firmeza e apertou seu braço comprido. – Eu amo você e por isso contei a verdade – deslizou a mão até encontrar a mão da esposa que estava fria. – Não precisa se preocupar. Somos cúmplices. Você é meu álibi.

João Paulo sorriu para a esposa que pôde ver os dentes do marido reluzirem sob a penumbra do quarto. Alice fechou os olhos e tornou a abri-los várias vezes. Sempre se deparando com a mesma cena. João Paulo segurava sua mão, e ela já não estava tão gelada.

– Quer voltar a dormir agora? Podemos conversar mais sobre isso pela manhã e então, se desejar, conto todos os detalhes – encostou a cabeça na da mulher. Alice estremeceu.

– Isso é verdade? – As palavras soaram precisas.

– Claro que sim. Acha mesmo que eu brincaria com algo assim, querida?

Alice tornou a fechar seus olhos e desta vez demorou mais para abri-los.

– Leve o tempo que precisar, meu amor. Ainda estarei aqui – tornou a apertar a mão da esposa que ainda guardava resquícios de frieza.

Alice recuou a cabeça e soltou a mão do aperto, trazendo-a até o peito. Sentou-se na cama. Quando abriu novamente os olhos novamente, as lágrimas caíram, desenhando o traço fino do rosto.

– Não chore, querida.

João Paulo sentou-se imediatamente e, após acender as luzes, levou a mão para aparar as lágrimas da esposa. Alice recuou novamente.

– Como posso não chorar, João Paulo? – Sua voz tornara-se fina demais. – Você enlouqueceu, é a única resposta que encontro para tudo isso.

Alice levantou-se da cama e começou a caminhar em direção ao telefone. João Paulo deu um pulo na cama e alcançou a esposa, arrancando-lhe o aparelho da mão.

– O que você ia fazer, Alice? Ligar para a polícia? – Sua respiração estava rápida demais.

Alice olhou com assombro para o marido. Depois baixou a cabeça e fez o caminho de volta até a cama.

– Polícia? Você está surtado e acha que eu vou ligar para a polícia? – Sua voz trazia um quê de ironia – Ia ligar pra sua mãe, claro.

Agora quem estava assustado era João Paulo.

– Para minha mãe? – De repente ele se sentia ultrajado. – Eu mato uma pessoa e você quer ligar para minha mãe, Alice? De onde tirou essa idéia?

Alice estava sentada na cama. Seu olhar parecia vago. Sua posição dizia o contrário.

– Venha cá, meu bem... eu sei que você passa por muita pressão no tribunal. E lidar com aqueles assassinos todos os dias pode estar afetando o seu juízo.

Alice falava com amabilidade. E dando dois tapinhas na cama, convidou o marido a se sentar ao seu lado. João Paulo caminhou até a esposa ainda com o telefone nas mãos e sentou-se.

– Olha, querido. Acho que precisamos mesmo de férias. Você vinha falando disso há tempos e, por causa da loja, eu não dei ouvido – Alice segurou a mão do marido que a observava com curiosidade. – Podemos ir para o sul, você adora o sul. Ou então para outro país. Nunca fomos à Espanha, ou procuraremos uma praia e então você pode me contar sobre aquele tal sonho, que tal?

Alice parecia empolgada. Sorria efusivamente e gesticulava conforme desenhava as possibilidades. João Paulo assistiu a toda exposição da mulher. Logo, levantou e se sentou à sua frente no baú que ficava aos pés da cama. Segurando as mãos de Alice, encarou-a.

– Querida, a idéia das férias é realmente ótima. Mas, preciso que você entenda o que está acontecendo – ele baixou a cabeça e respirando fundo, retomou a fala. – Eu sei que parece inacreditável, mas foi algo inevitável e maior do que eu. Esta noite quando entrei pela porta da frente não era mais o mesmo homem. Matei alguém e preciso que você compreenda isto. Não estou delirando.

Os olhos de Alice estavam novamente vidrados e João Paulo assistiu a vermelhidão das lágrimas chegarem rapidamente aos olhos da esposa. Suas mãos voltaram a ficar geladas entre as mãos enormes dele.

– Se você precisar de tempo, eu entendo. Preciso de você.

As lágrimas rolaram. Alice não se mexia. As gotas que caiam de seus olhos pareciam ter vida. Ficaram assim por algum tempo. Suas mãos entrelaçadas e Alice estática. Todo o seu corpo estava gelado agora. O primeiro sinal de movimento foi o tremor de seus lábios. Neste momento, encarando-a, João Paulo suspirou.

– Se quiser, levo-a até lá. Aliás... – Uma ruga formou-se em sua testa. – Não preciso fazer isso, pois tenho aqui a prova.

João Paulo tirou do bolso uma corrente ensangüentada, a qual ofereceu a Alice. Ela a segurou e olhou o pingente de um Cristo crucificado. Nunca vira um crucifixo sujo de sangue, de fato. As lágrimas não paravam de rolar. João Paulo olhou para o relógio atrás da esposa. Passava de três manhã.

– Olha querida, você não precisa digerir tudo isto de uma vez, podemos... – Alice o interrompeu.

– Isso é mesmo verdade, amor? – Sua voz era baixa, mas permeada por um desespero latente. – Você fez mesmo isso?

João Paulo olhou para a esposa com carinho e, aproximando-se um pouco mais, confirmou com um aceno.

– João Paulo o que você fez? – Ela o encarava com seus cabelos desgrenhados.

– Bom, foi como eu te disse... – Alice o interrompeu novamente.

– Como você pode falar com tanta naturalidade? Se você matou mesmo essa pessoa, e eu começo a acreditar nessa possibilidade, você fez algo monstruoso...

Alice soltou suas mãos das do marido e começou a recuar. A intensidade de sua voz aumentara um pouco.

– Como pode tratar com tanta naturalidade? – Alice estava fora de si – Quem é você? Quem é você, seu monstro e o que fez com meu marido.

João Paulo levantou-se calmamente e fechou a porta da sacada. Alice, no centro da cama, olhava-o com estranheza, enquanto repetia as mesmas palavras. Então ele se sentou novamente e olhou para ela.

– Pronto, agora você pode gritar a vontade, querida. Os vizinhos não precisam saber da nossa intimidade – e voltando-se para si, pensou em voz alta. – Sempre soube que vidros à prova de som seria uma ótima idéia.

Alice olhou com horror para ele. Suas palavras agora saiam altas como nunca.

– Quem é você? Você não é o homem com quem eu me casei. O que você fez, seu monstro? O quê?

João Paulo não se mexeu, até que a esposa saltou da cama e tentou alcançar o telefone. Ele o fez antes e desligou o aparelho. Alice tornou a gritar, até que seus pulmões e suas cordas vocais não permitiram mais. E então começou a fazer perguntas, durante algum tempo. Talvez horas. O marido, entretanto, não respondia a nada.

– E agora? Vai me manter presa aqui? Como refém? Ou vai me matar, também?

João Paulo olhou com assombro para a esposa quando ela soltou a última pergunta. Seus olhos que haviam se mantido compenetrados, de repente estavam marejados. Ele se levantou e foi em direção a Alice, que agora estava do outro lado do quarto, sentada próxima à sacada.

– Eu jamais te machucaria, Alice. Jamais! Eu a amo, ouviu bem. Eu a amo.

Alice mal olhava para ele. Seus pequenos olhos estavam vermelhos. As lágrimas já haviam secado, assim como sua voz se esvaia a cada sílaba proferida. Ele se aproximou e se sentou bem defronte a ela. Com os olhos fixos na esposa, tentou alcançar as mãos pequenas que antes o convidaram a um abraço. Alice cruzou os braços com força, recusando-se a permitir que ele a tocasse.

– Eu amo você, Alice – havia sombra em sua voz. – Eu amo você demais.

Alice ainda olhava para fora da sacada. Nada se movia na rua.

– Olhe para mim, por favor.

Alice voltou sua cabeça para João Paulo e afrouxou as mãos que estavam tão bem seguras sobre o peito.

– O que você fez? – Disse pausadamente.

João Paulo manteve a cabeça baixa.

– Eu o matei, Alice – e olhando diretamente para a esposa continuou. – E não me arrependo.

O casal encarou-se. Nenhum dos dois sorria. Um facho de luz os iluminou quando um carro solitário atravessou a rua em alta velocidade. Nenhum dos dois desviou o olhar. João Paulo estendeu a mão até a esposa e dessa vez alcançou a mão de Alice.

– Quem? – Alice perguntou com frieza.

– Aquele juiz.

– Hum...

– Não me arrependo, Alice.

– Eu sei – as lágrimas voltaram a brotar de seus olhos. – Eu não posso redimi-lo, João Paulo.

O marido aparou algumas lágrimas do rosto da esposa.

– Eu sei, minha querida. Não quero que me redima. Só quero que seja minha esposa, como sempre foi.

– Você sabe que isto não é justo.

– Sei e sei também que não poderia pedir a mais ninguém.

João Paulo aproximou-se mais de Alice. Ela o abraçou. O ombro da camisa do promotor logo ficou ensopado, enquanto ele a acariciava.

– Preciso de você, Alice.

Alice soltou-se do abraço e olhou diretamente para o marido.

– Também preciso de você.

– Lembra-se, querida? Na saúde e na doença...

– Na alegria e na tristeza...

– Até que a morte...

– ... até que a morte nos separe.

Os dois levantaram-se e caminharam de mãos dadas até a cama. João Paulo beijou-lhe a testa e segurou sua mão. Alice fechou os olhos contornados pelos cílios ainda úmidos. Dormiram abraçados. Cúmplices um do outro. Os raios de sol começavam a tocar a superfície azulada do quarto.


Conto elaborado entre Abril e Maio de 2010.

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Juliana!
Queria te agradecer pelo recadinho de parabéns que deixou no blog, fiquei super feliz e desejo tudo em dobro pra ti.
Peço desculas pela minha falta de tempo em não poder ler teus textos, assim que der, eu volto :)

beijinhos e ótima semana!

Aline disse...

Nossa! muito bom.

Li inteirinho, que situaçãozinha hein.
:D