Alice
por Juliana S. Marton
– Henriqueta!
Ele gritou por mim e não pude olhá-lo. Não depois de tudo o que ele
tinha feito. Não da forma como ele estava. Sai correndo. Simples. Não olhei
mais para trás. Nunca mais o vi.
– Que final mais estranho... –
Alice pensou em voz alta.
Espreguiçando-se ela deixou o
livro cair delicadamente sobre o tapete aos pés da cama. Não era o melhor livro
que ela tinha lido. Não, com certeza era o pior. "Que final mais besta!", esbravejou. Levantando-se de supetão,
foi parar sentada em sua escrivaninha, onde apanhou logo uma das folhas brancas
e a caneta roxa... "Ou seria melhor
a verde?". Alguém bat... Abriu a porta.
– Queeê?
– Querida, você vem jantar? A
comida já deve estar fria – Raquel sempre entrava no quarto falando e falando, o
que deixava Alice muito irritada, às vezes. Mas, bem o que ela podia fazer? – O
que é isso aqui? Já terminou de ler? E o que achou? Roberto disse que adoraria
saber sua opinião... Você gostou?
– Bom... O final foi um pouco
decepcionante, Raquel. Mas, acho que ele pode fazer alguma coisa a esse
respeito. Quer dizer, ele é o autor, certo? Ele pode matar alguns personagens,
também?
Raquel ficou um pouco assustada
com aquela pergunta desconcertante, mas nada que a atrapalhasse a rir um pouco
da ansiedade de Alice.
– Acho que sim, querida – ela
disse. E se dirigindo à porta novamente, completou – Desça logo para comer e
bem... Pode deixar que eu não conto para ele que você detestou o livro. Vou
pensar em algo simpático para dizer...
Era isso o que ela tanto gostava
em Raquel: ela sempre adivinhava tudo o que Alice pensava de verdade, mesmo
que, a garota tentasse esconder e ela, realmente, muito boa em dissimular suas
reações. Mas, ela sabia. Raquel era boa. E daria uma ótima personagem, caso alguém
um dia resolvesse escrever sua história. Um barulho estranho a fez parar de
pensar e ela riu ao perceber que era o seu estômago.
– Acho melhor não escrever essa
carta para o senhor Costa, de qualquer forma.
Alice saiu correndo e desceu as
escadas como se fosse uma rampa. Desirèe e Kim já estavam na sala de estar, bem
sentadinhas e, muito provavelmente, satisfeitas. Kim sempre com aquele iPod no
ouvido, com um belo heavy metal ecoando em sua cabecinha japonesa.
E Desirèe... "O que ela está
fazendo?". Desi – como todos as chamavam ali na casa – era uma pessoa
única, se é que se pode dizer isso de alguém totalmente excêntrica e diferente.
Parecia estar com uma espécie de pedaço de madeira nas mãos. O barulhinho
incômodo mais uma vez. Aquilo teria que esperar.
Na cozinha, apenas Gil. Cantava,
enquanto enxugava algumas louças. Ela era absoluta. E como era. Gil era a única
funcionária de Raquel que estava lá desde o começo. Ela era demais. Todos a
adoravam. E, bem, como não amar aquela mulher?
– Oi, Gil! O que temos para o
jantar? – Alice disse, enquanto apanhava um prato e abria as tampas das panelas
já geladas para verificar.
– Aliiiiice! Pensei que não viria
comer mais... – Aquela mulherona esfregava as mãos no avental perfeitamente
amarrado à cintura larga. – Vamos ver o que temos aqui ainda para esta comedora
de livros...
Alice riu.
– Senta, meu bem. Pode deixar que
eu pego para você.
Acomodada na ponta da comprida
mesa, Alice ficou observando a dança de Gil, que deslizava de um lado para o
outro, falando e falando, o que deixava Alice completamente encantada.
– Raquel disse que você não
gostou do livro do Costinha né?
Alice começou a olhar para baixo
e um certo rubor tomou conta de suas bochechinhas fofas.
– A síndrome de avestruz de novo
não. – Gil divertia-se cada vez que Alice envergonhava-se – Não faz mal,
amorzinho... Eu guardo seu segredo, se você não comentar com a Raquel que eu
chamo ele de Costinha, que tal nosso acordo?
Alice sorriu, levantando o
mindinho.
– Feito!
– Tudo bem. Agora coma, viu.
Quero nossa futura escritora bem nutrida. – Gil falou e se virou para seus
afazeres cantando.
"Escritora", Alice resmungou consigo. Todos achavam que a
pequena seria autora de grandes livros e que suas páginas cheias de
criatividade comporiam grandes obras, aclamadas pelo público e, posteriormente,
estudadas por todos.
– Gil?
A cozinheira despertou de sua
bela canção.
– Hã? O que foi, meu amor... A
comida ainda está fria? – Gil apressou-se até Alice.
– Não, não. Está uma delícia.
Mas, você se importa se eu terminar no quarto? Quero terminar uma carta... –
Alice estava sem jeito.
– Aaaah, claro que não, fofinha!
Pode ir, mas depois traga a louça, tá bem?
Alice andou até o quarto,
passando pela sala. "O que é aquilo?",
mas nem a curiosidade para saber qual era o novo brinquedinho de Desi parecia
irresistível hoje. Foi direto para o quarto e terminou de comer sentada no
chão, encarando a janela semi-aberta.
"Escritora...", disse com um pouco de antipatia. Alice não era
escritora. Seu amor pela leitura não significava que ela poderia, de fato,
escrevê-las. Não da forma como todos aqueles grandes nomes fizeram ao longo da
História. Shakespeare,
Dickens, Lewis, Christie, Conan Doyle e, seu favorito, Lewis Carrol. Aliás,
deveria ter sido o autor favorito de sua mãe, ou de seu pai... Como saber? Bem,
a Alice foi A grande protagonista
dele e ela, assim como Alice, era uma garota que gostava muito de histórias. A Alice não era escritora, nunca o foi. A Alice era apenas uma garota que
perseguiu um Coelho Branco, uma vez e que se tornou um dos personagens mais
queridos e lembrados de toda a História das histórias.
Alice queria ser como a Alice.
Ela não era uma escritora. Jamais
poderia criar pessoas tão desinteressantes e entediantes, como o senhor Costa
criara. E até tinha um pouco de inveja daquela cabeçona por conseguir criar
alguma coisa. Não, Alice nascera para ler. Para apreciar cada palavrinha, cada
vírgula, cada ponto.
Ninguém sabia ler tão bem quanto
ela. Ninguém entendia tão perfeitamente cada sentimento impresso atrás das
letras. Ninguém. Nem mesmo o Língua
Encantada daquele romancezinho de Conérlia Funke. Seria interessante ser
como Meggie... Trazer seus personagens preferidos à vida seria, mesmo, demais.
"Isso poderia causar alguns problemas,
eu acho... Não gostaria de ver Lord Voldemort vagando por aqui", Alice
riu de si mesma. Ela sempre tivera uma espécie de atração por esses vilões. Só
na fantasia, claro.
Alice não queria ser escritora.
Ela não queria criar essas histórias. Não tinha vontade de encantar ninguém.
Alice queria vivê-las. Estar sempre perto de seus personagens preferidos. Ser
um dos irmãos Pevensie, talvez. Lúcia ou Edmundo, tanto faz. Ela queria viajar
pelo espaço e visitar o Restaurante no Fim do Universo. Assistir de camarote ao
fim do mundo e ter como melhor amigo um cara que, literalmente, não era deste
planeta.
Alice queria investigar e
desvendar casos difíceis de crimes sem solução. Queria vestir uma capa xadrez e
fumar com um cachimbo. Queria ser um detetive francês importante e queria mexer
em seu próprio bigode sempre que lhe ocorresse uma nova ideia. Ela queria
viajar pela Terra Média ao lado de seis companheiros totalmente inusitados. Ou
ser um dos seres mais antigos do lugar e falar o idioma mais preguiçoso e lento
de que já se teve notícia.
Alice caminhava pelo quarto,
deslizando os dedos por cada livro ali. A vontade de ler era sempre tão grande.
Embarcar em cada aventura ao lado daquelas pessoas cativantes, ou não. Às
vezes, até mesmo, chatas demais e irritantes e... Barulhentas?
Alice sentou-se com a Alice nas mãos e a abriu. Começou a
viver. Simples. Não estranhou quando o cenário mudou completamente – Carrol
gosta muito dessas mudanças repentinas, todos sabem – por isso nem olhou para
traz. Nunca mais a viram.
Alice tornou-se a Alice.
FIM
Conto elaborado em agosto de 2011, inspirado no clássico Alice, de Lewis Carrol.
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