Desrespeito no trânsito está relacionado ao
comportamento social voltado para o individualismo. Somente educação pode mudar
o cenário, para especialistas
Juliana Marton
Quem nunca acelerou quando o
condutor na via ao lado sinaliza para entrar na frente, que atire a primeira
pedra. Não é preciso trafegar muito por Goiânia para ver um monte de
irregularidades nas ruas. Seta é uma das mais comuns, mas as faltas vão de
carros estacionados em lugares inapropriados, a pedestres atravessando fora da
faixa – que, às vezes, está até próxima.
Buzina, então, nem se fala. Como
se não bastassem, muitas vezes, os gritos e xingamentos. Até as rótulas, tão
comuns na cidade, tem sido substituídas por semáforos, nos lugares de maior fluxo,
porque ninguém está disposto a ceder a vez ao próximo. O que também não impede
que os apressadinhos furem o sinal vermelho. O sentido de coletividade,
solidariedade e respeito no trânsito parece estar fora de moda.
A cultura do transporte
individual que tem dificultado a implantação de medidas em favor da mobilidade
urbana, nos últimos tempos, também tem sido uma das grandes vilãs em termos de
violência no trânsito. A cada dia, vê-se o aumento de infrações cometidas não
só pelos condutores, mas também por pedestres e ciclistas – estes em menor
grau, claro. Tudo graças a um comportamento que tem se tornado comum na
sociedade: o individualismo.
Essa é a opinião da cientista
social Sílvia Rosa da Silva Zanolla, que é docente na Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Goiás e pós-doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano. A pesquisadora acredita que o trânsito reflete o comportamento social.
Logo, se o indivíduo comporta-se socialmente de uma forma individualista,
dificilmente ele irá pensar no coletivo ao tomar decisões ao volante.
“Uma pessoa nunca é em casa o
que não seria no carro. Uma pessoa que não tem educação e não pensa no próximo,
sempre vai levar esse comportamento para os ambientes. Ela entra no carro e é
ela e o carro”, expõe Zanolla. De acordo com ela, todavia, o problema não está
somente no indivíduo, mas em toda a estrutura sobre o qual a sociedade
ergue-se, atualmente, o que passa pelos sistemas de produção e criação do
desejo.
“As questões econômicas e
estruturais influenciam muito no que diz respeito à violência. A visão que a
indústria vende do automóvel fortalece a violência e a competição no transito.
Por exemplo, por que se fabrica um carro que pode ir acima de 100km/h, se
existe uma lei que limita a velocidade?”, questiona a pós-doutora. Para ela, o
automóvel tem uma representação muito idealizada pela indústria cultural, o que
fortalece um ideal individualista.
“As indústrias não estão
preocupadas em produzir um produto educativo, mas um que venda. Isto traz consequências,
pois as pessoas não refletem sobre suas ações, mas competem o tempo inteiro”,
comenta Zanolla. Essa competição impele as pessoas a deixarem de pensar no bem
maior, pré-requisito para a harmonia no convívio social, para o qual é
necessária a renúncia das vontades imediatas em prol do coletivo.
A docente apoia-se na teoria
psicanalítica elaborada por Sigmund Freud. “Freud parte do pressuposto que
todos nós que vivemos em sociedade, para sermos aceitos e conviver socialmente,
precisamos renunciar nossos instintos mais primitivos. O ser humano precisa
tentar equilibrar esses instintos”, argumenta Zanolla. De acordo com ela, esse
equilíbrio está na capacidade de reflexão sobre o coletivo e o individual, no
sentido de uma harmonização.
“Atualmente, as pessoas estão
muito voltadas para o que é mais prático. Elas não estão sendo formadas para
esse sentido de reflexão, mas para atender as satisfações imediatas. Ou seja,
para ganhar dinheiro, eu me corrompo, ou faço qualquer coisa”, observa a
pesquisadora. Para ela, este é um fenômeno que tem atingido todas as camadas da
sociedade e que, se não for revertido, poderá levar não apenas ao aumento da
violência, mas a uma autodestruição.
“Uma pessoa corrupta,
psicologicamente, só pensou em satisfazer suas necessidades mais imediatas. Se
não houver uma mudança de mentalidade das pessoas individualmente e
coletivamente podemos cair na barbárie”, analisa. A única saída, neste sentido,
seria o investimento em uma formação ampla para o cidadão, que englobe não só
direitos e deveres, mas a humanização e a ética.
“A ética é isso, o sujeito sofre
com a dor do outro, ele tem uma alteridade. E quem pode dar isso é a educação,
a formação, a cultura”, argumenta Zanolla. Para ela, as pessoas estão muito
preocupadas com o aqui agora, o mundo virtual. Contudo, é necessário mostrar às
pessoas quais são as consequências de seus atos não só para elas, mas para o
outro e para a sociedade. “A gente vive um mundo sistêmico, então a minha ação
reflete sobre o outro”, expõe.
Educação que
transforma
Não é raro ouvir argumentações
que defendam a educação como o princípio para a mudança. No trânsito, ocorre da
mesma forma. A diferença é que o investimento nos condutores e usuários das
vias não trazem tanto retorno, quanto o tempo dedicado à formação na infância.
Por essa razão, as escolas são um dos principais públicos-alvo da Secretaria Municipal
de Trânsito, Transportes e Mobilidade de Goiânia (SMT).
De acordo com Andrey Azeredo,
titular da pasta, a SMT tem trabalhado em dois campos, em termos de ações
educativas para o trânsito: o motorista do futuro, e o usuário da via. No
segundo caso, as campanhas são periódicas e regulares, mas no primeiro as ações
tem caráter permanente. “Realizamos semanalmente palestras e eventos nas
escolas que vão permitir uma melhor formação desse futuro condutor”, explica o
secretário.
Do outro lado, as ações
temporárias também tem surtido efeito no trânsito, mesmo que em menor escala,
na avaliação de Azeredo. “Geralmente, são ações temáticas, apresentadas pelos
próprios técnicos da secretaria e que podem ser permanentes ou pontuais. Por
exemplo, o Maio Amarelo, desenvolvida em parceria com a Secretaria Municipal de
Políticas para as Pessoas com Deficiência ou Mobilidade Reduzida (Semped)”,
exemplifica.
Neste caso, cadeiras de rodas
com o aviso de “É só um minutinho” são espalhadas pela cidade em vagas não
destinadas a Portadores de Necessidades Especiais (PNE), como uma forma
provocativa de alertar os condutores que costumam usar essa desculpa para
estacionar nas vagas especiais. “Busca-se despertar no condutor o mesmo
incômodo que os PNE tem quando as vagas preferenciais são usadas irregularmente”,
explica.
Para Sílvia Zanolla, o
investimento maior deveria ser na educação permanente, vez que a formação a
longo prazo poderia modificar este cenário. A docente defende, inclusive, a
inclusão de uma disciplina específica no currículo escolar do ensino
fundamental. “No trânsito, se não há uma visão consciente da função do
automóvel e das normas, não vai adiantar fazer um cursinho no Detran, em que
ele decora o livretinho e aí acabou”, critica.
“Realmente, a chave para
conseguir superar toda essa situação está justamente no incentivo e
investimento à formação desde a infância”, orienta a psicóloga. “Essas
campanhas temporárias, muitas vezes, acabam deseducando o condutor. Lembro que
há seis ou sete anos, fez-se um comercial em que o pai estava com a criança no
carro e era ultrapassado e a criança xingava o motorista que tinha
ultrapassado. Então, traz uma visão contraditória”, nota.
Para o doutor em Transportes
Willer Carvalho a culpa é da falta de interesse do Poder Público em investir em
medidas de formação. “É um processo de educação que tem que ser amplo. Não é só
o motorista, precisa atingir todos os usuários da via, incluindo pedestres e
ciclistas. Eu acho que as campanhas educativas são importantes e tem um papel,
mas sozinhas não conseguem atingir o objetivo maior que é o de formação”, diz.
O público-alvo, Carvalho aponta
que, preferencialmente, são as crianças, porque além de serem o futuro do
trânsito, tem o poder de influenciar os condutores de suas casas. Na opinião do
pesquisador ainda , as multas tem resultados imediatos, mas não são eficazes na
formação. “A lei seca que já trouxe alguns resultados, por exemplo, é punitiva,
não é educativa. A pessoa não parou de beber porque põe em risco a vida de
outras pessoas, mas pela dor no bolso”.
Punir ou
não?
No senso comum, o comportamento
só muda, quando se mexe no bolso. Bem, a SMT acredita nisso. Pelo menos, em
parte. “É uma forma até jocosa de dizer, mas alguns só se incomodam quando
provocados na parte mais sensível do corpo, que é o bolso”, provoca o
secretário Andrey Azeredo. Para ele, a atuação mais eficiente da secretaria por
meio da fiscalização eletrônica tem resultado em saldo positivo para a cidade.
“Eu acredito que um exemplo, com
resultado positivo e numericamente comprovado, são os corredores preferenciais
fiscalizados eletronicamente pelos nossos agentes. Quando da implantação dos
primeiros na Rua 10 e na Avenida T-63, o número de autuações foi enorme. Hoje,
se mantém num patamar bem abaixo do original. Isso quer dizer que o cidadão
respeita, observa e sabe que será multado se cometer a infração”, avalia.
Nestes termos, os números podem
até ser representativos, mas não representam uma mudança de comportamento real,
na análise de Sílvia Zanolla. De acordo com a cientista social, a indústria da
multa instaurada na cidade, não promove uma conscientização, pelo contrário.
“Ela desinforma. A pessoa vai lá pagar a multa, ou até sonega. E não é que a
pessoa seja ruim, é porque é ignorante, no sentido de não ter conhecimento”,
explica.
“Pode até resolver em um sentido
mínimo. Mas, não acreditamos em medidas paliativas, sem o cunho da formação
pedagógica e cultural. É preciso investir na formação do sujeito”, assevera
Zanolla. “Eu concordo que, como a educação leva um tempo maior, a punição faça
parte desse processo. O que não concordo é que as autoridades encarem essa
concepção como uma forma de educação, o que não é”, comenta.
Na opinião da psicóloga, a
defesa da resolução do problema pela punição tem se tornado comum. Mas, por
mais que surta efeito a curto prazo, não irá resultar em uma sociedade mais
humana, ética e com alteridade. “Na punição o efeito é mais rápido, mas isso
tudo é ilusão. É totalmente insuficiente. A continuarmos a investir em punição,
sem investir na educação, a tendência é piorar a violência no trânsito. Isso é
um prognóstico meu”, critica.
Para Willer Carvalho, a lei é
até rigorosa, mas a sua aplicação não é efetiva, principalmente pelos
instrumentos de fiscalização que são falhos na cidade. O docente aponta que um
dos fatores que pode influenciar neste sentido é um efetivo formado por um
número de agentes de trânsito inferior ao que a demanda de Goiânia necessita.
Por essa razão, a punição tem deixado muito a desejar.
“A legislação é correta e
rigorosa, mas não atinge seu objetivo por falta de fiscalização. Os órgãos
responsáveis não tem a estrutura necessária para atender a região metropolitana
de Goiânia”, expõe Carvalho. Para ele, o misto entre a falta de conscientização
dos condutores e demais usuários das vias públicas, em relação ao coletivo,
aliada à falta de punição, com relação às penalidades estabelecidas, são uma
fórmula para o desastre.
BOX
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Alguns números de Goiânia
1,23 habitante/carro
1,14 milhões de automóveis registrados
120 pessoas já morreram em 2015 em acidentes de
trânsito
Em 2014, foram 269 pessoas
84% das vítimas fatais estavam em motocicletas
27 morreram após atropelamento
Fonte: DICT
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Reportagem elaborada em agosto de 2015 para o jornal Tribuna do Planalto.
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