Por Juliana Marton
O caso da Escola Base de educação infantil foi muito repercutido e até hoje é tema de aulas para estudantes de jornalismo. O livro de Alex Ribeiro que traz toda a narrativa do caso mostra como a imprensa (empresa jornalística) trabalha, e como ela usa certos fatos para criar um ambiente de liberdade de informação. O autor aponta o descuido e abusos dessa liberdade, e demonstra como a imprensa pode ser cruel ao adotar fontes que não tem o compromisso com a verdade, como nós jornalistas temos, ou pelo menos, deveríamos ter. A discussão maior gira em torno das conseqüências que as ações impensadas de repórteres e editores geraram ao publicarem em manchetes escandalosas fatos que ainda não haviam sido comprovados, tornando culpado, perante a população, o grupo de suspeitos primários.
Tudo começou no dia 26 de março de 1994, quando numa conversa com o filho, Lúcia Eiko Chang “descobriu” um suposto assédio que seu filho vinha sofrendo nas dependências da escolinha onde estudava. Lúcia, com seu apurado instinto maternal, contatou logo Cléa Parente, mãe de outra criança que estudava na escolinha. As duas, então, resolveram contatar a polícia para comunicar a suspeita de abuso. Claro! Mais do que correto. No entanto desde esse momento começou uma busca louca por provas que sequer existiam, e por culpados que até hoje não se tem certeza de que realmente existiram.
O erro, em princípio, não foi das mães por quererem descobrir a verdade quanto à situação de seus filhos, mas sim o processo que abarcou todo o caso, partindo do comportamento leviano da polícia e concluído na insanidade da imprensa. Desde o começo viu-se um delegado tentando promover-se em benefício do fato que ganhou enorme repercussão, e uma mídia sedenta por notícias quentes em pleno feriado prolongado. Durante toda aquela semana sucederam-se horrores, que se viam claramente retratados pela imprensa. Foi um verdadeiro espetáculo, no qual o “denuncismo” e a busca desesperada por um furo de reportagem dominaram a todos aqueles profissionais da notícia.
O único veículo que não publicou nada acerca do caso foi o Diário Popular, que na época era dirigido pelo jornalista Jorge de Miranda Jordão. Desde o início, Miranda Jordão afirmou que tudo aquilo era mentira e invenção do então delegado Edélson Lemos – outrora os dois haviam tido um desentendimento em motivo de algumas fotos que Edélson proibira a publicação. Para comprovar sua teoria, Miranda Jordão disse a um amigo que as coberturas de notícias de crimes eram a especialidade do Diário, e que o jornal não daria nenhuma abertura para o delegado promover-se ás suas custas. Pela pressão sofrida, o editor do Diário Popular acabou por publicar, mas somente uma nota, por meio da qual justificava a não publicação do caso.
Curiosamente, hoje o Diário Popular não mais existe, pois foi comprado pelas organizações Globo, passando a se chamar Diário de São Paulo. À época, a postura assumida pelo veículo foi aplaudida, e até cogitou-se a idéia da concessão do Prêmio Esso pela não publicação do caso. Todavia, e é aí que entra a contradição, não se pode dizer o mesmo do atual Diário de São Paulo, já que a cobertura do caso Isabella Nardoni feita pelo impresso fugiu totalmente da postura assumida no episódio anterior.
E é nesse contexto que se chega à Constituição brasileira, que assegura a todos sem distinção, a igualdade, a liberdade, a inviolabilidade, e a propriedade. Em seu artigo 5°, a Constituição traz uma série de incisos onde são detalhados todos os aspectos de liberdade assegurada aos brasileiros, e que foram negadas àqueles seis acusados de pedofilia. Icushiro e Maria Aparecida Shimada, Saulo e Mara Nunes, e Maurício e Paula Alvarenga tiveram suas casas e suas vidas invadidas, sua liberdade foi totalmente aniquilada desde a primeira reportagem que foi ao ar. Onde está a responsabilidade do jornalista ao apurar os fatos e pré-julgar pessoas?
Além do mais, têm-se ainda o Código de Ética do Jornalista, que traz todas essas questões de como tratar a fonte e a notícia sem seus artigos. Dividido em cinco capítulos, o Código detalha a importância da apuração dos fatos e o relacionamento fonte x jornalista. O inciso VI, do artigo 6°, diz que “é dever do jornalista não colocar em risco a integridade das fontes e dos profissionais com quem trabalha”, o que não foi visto durante a cobertura do caso, afinal, os casais tiveram que esconder-se devido a enorme repressão que sofreram da população.
Faz-se assim necessário que o jornalista perceba que a apuração dos fatos e o modo como os veículos publicam as notícias influem grandemente na opinião pública, e que, desse modo, não se pode simplesmente dizer que “Tias torturavam crianças na escolinha do sexo”. Não! O jornalismo envolve responsabilidade, e é com ela que deve ser realizado. Foi impressionante como a imprensa conseguiu ferir tantas vezes seu código deontológico em apenas uma semana, e tudo isso, em motivo da fome pelo sensacional, pela venda de jornais.
A realidade globalizada de hoje, exige sim, uma postura mais empresarial dos jornais, tanto impressos, quanto as emissoras de rádio, e as redes de televisão. Entretanto, pode-se ainda conciliar a apuração correta dos fatos com a venda de jornais. O Código de Ética deve ser seguido, se não, por que sua existência? Não faz sentido uma categoria profissional adotar algo que não vá seguir. Além disso, a ética é uma coisa diária. O que dizer da postura do Diário Popular diante de tanto estardalhaço? Às vezes vale mais a pena vender menos e ser mais tarde reconhecido pela sábia atitude, do que bater o recorde de vendas e depois ser objeto de estudo de estudantes da profissão por ter errado de maneira grosseira.
A sociedade, (in)felizmente vê o jornalista como um justiceiro que pode e vai livrar a sociedade de todo mal oculto. Contudo, os jornalistas não têm tanto poder, se é que possuem algum. No caso da escola Base, especificamente, o jornalista Valmir Salaro, da Rede Globo, foi “acusado” de ter assistido a uma sessão de tortura de um dos acusados, e ainda, logo depois a pessoa que teria sido torturada pediu seu auxílio. Cabe a nós perguntar: por que essa pessoa achava que aquele repórter poderia fazer algo a respeito? Esse alguém, simplesmente baseou-se no senso comum de que o jornalista é um ser que pode fazer justiça utilizando de todos os artifícios possíveis, por vezes além da própria lei.
Está dada, portanto, a diferenciação de interesse público e interesse da curiosidade pública, que consiste em saber onde termina a necessidade de informação para suprir as necessidades do indivíduo, e onde se inicia a curiosidade mórbida da população em geral. A massa, por hora, exige dos veículos de comunicação, matérias sem qualquer sentido real, mas que apenas satisfaçam sua curiosidade. Geralmente, tais reportagens, são de celebridades que se envolveram em algum escândalo. Como exemplo tem-se o caso do jogador de futebol, Ronaldo, que foi pego com algumas travestis. Sua vida foi totalmente revirada, como já é de costume.
O que vale questionar é: qual a relevância de casos como esse para o povo, senão satisfazer o prazer mórbido que as pessoas têm de rirem de outras que estão ao seu redor. É claro que não cabe a nós julgar a opção sexual de alguém. Se, por exemplo, o Ronaldo gosta de travestis não é assunto de mais ninguém, a não ser dele próprio. No entanto, a imprensa insiste em cobrir tais acontecimentos, justamente porque estes fazem os jornais venderem mais, ou a audiência bater verdadeiros recordes. Os jornalistas devem ter a percepção do certo e do errado, pois há aí uma agregação de valores sociais e morais que devem ser respeitados.
Hoje, o que restou de tão brutal violência contra aqueles seres humanos, são conseqüências gigantescas, que envolvem remédios para dormir, pânico de sair de casa e até divórcio de um dos casais. Passar por uma situação tão delicada quanto esta é, seguramente, péssimo para a saúde de uma pessoa, quanto mais para dois senhores, como era o caso de Icushiro e Cida. Cida faleceu no ano passado, 2007, aos cinqüenta e quatro anos. Icushiro sofreu três enfartes desde o início do caso. Como reparar os danos causados por uma cobertura falha e sensacionalista?
O processo contra os acusados foi arquivado somente dez anos depois do início das apurações. As empresas jornalísticas que cobriram o evento foram processadas, mas a ação, que já tem quatorze anos, ainda está em processo de julgamento, e as empresas podem recorrer. Se o juiz der ganho de causa às vítimas, a indenização superará alguns milhões de reais. Infelizmente, até a justiça ser feita, alguns deles já não poderão usufruir daquilo que lhes é devido. Enquanto isso, os repórteres saem ilesos, e as indústrias da informação continuam a fabricar seu espetáculo diário.
Artigo de Opinião produzido em Junho de 2008.
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