segunda-feira, 27 de julho de 2009

Nação: Uma (des) construção

Por Juliana Marton

"A nação revela, na sua representação ambivalente e vacilante, a etnografia de sua própria historicidade e abre-se para a possibilidade de outras narrativas do povo e de sua diferença” (Bhabha, 1994, p. 300).


A história brasileira é cheia de peculiaridades intrigantes que estão sempre permeando o campo das discussões sociológicas, e sendo usadas pelos ditos fundadores da nação para poderem explicar algo inexplicável, que, em nosso caso, é o Brasil. O mito da criação da nação é uma estória que é imposta à sociedade, e que tenta interpretar a cena original de nascimento da nação. No entanto, isso é algo inatingível, já que a nação não tem uma só origem, mas é a fusão de vários povos, línguas, culturas e traumas. Estudar o país não é pressuposto para entendê-lo, claro que isso ajuda, todavia, o país, não é um só povo, uma só língua ou, ainda, uma única cultura, é muito mais do que isso. Infelizmente, esse conceito de unidade da nação está arraigado nas sociedades contemporâneas deixando à mostra o desinteresse dos povos pela história de seus países.



Percebe-se isso, principalmente, quando se lê um dos construtores do conceito nação, Sérgio Buarque de Holanda, que mostra um português ávido por riquezas instantâneas, mas temeroso: “Os portugueses, esses criavam todas as dificuldades às entradas terra a dentro, receosos de que com isso se despovoasse a marinha” (1988), e um espanhol forte e desbravador: “Para esses homens, o mar certamente não existia, salvo como obstáculo a vencer. Nem existiam as terras do litoral, a não ser como acesso para o interior e para as tierras templadas ou frias” (1988). Ambos não se importavam com os obstáculos, como o oceano, ou a falta de conhecimento do território, mas partiam em busca de conquistas e poder em detrimento das sociedades que atravessassem seus caminhos.

O genocídio feito pelo colono é justificado pela necessidade que se fez de dominação dos povos. Quando estes não se “adaptavam” às vis formas de abuso do invasor, eram assassinados das maneiras mais brutais. Quando não, passavam fome, frio, ou ficavam tão doentes que morriam jogados aos vermes. Com a desculpa da barbárie civilizada o colonizador, literalmente, usou os povos em seu próprio benefício, e enriqueceu, apesar de não mais possuir tais riquezas, às custas dos “bárbaros nativos”. Mesmo assim, a cultura contemporânea diz que tudo se fez necessário, e que “o” povo brasileiro deveria agradecer por ter tido uma oportunidade de ser mais do que o índio preguiçoso e o negro burro.

O que se percebe também em Darcy Ribeiro, que trata dessa questão com uma naturalidade excessiva e que traz uma resposta extremamente plana para a criação da nação-Brasil. Darcy não faz história. Conta uma estória de como os colonos dominaram e utilizaram a população indígena brasileira:


“A curto ou longo prazo, triunfaram os colonos, que usaram os índios como guias, remadores, lenhadores, caçadores e pescadores, criados domésticos, artesãos; e sobretudo as índias, como os ventres nos quais engendraram uma vasta prole mestiça, que viria a ser, depois, o grosso da gente da terra: os brasileiros” (1995, pág. 54).


Assim, sua resposta à questão do surgimento do povo brasileiro, é que a nação é produto do estupro das índias e da exploração dos índios, o que é assustador, por se tratar de uma coisa tão medíocre, que é tratada da maneira mais natural possível.

Além disso, a imagem que se tem do indígena é a de um ser vazio, preguiçoso e, principalmente, burro, como que se não percebesse o mal que aqueles vinham fazendo-lhe e consentisse em tais ações. Porém, a realidade, que não é apresentada, por sinal, é que os povos indígenas foram escravizados e utilizados da maneira como os portugueses, no caso do Brasil, bem entendiam, e essa forma não era nem um pouco amigável ou benevolente, mas uma forma de vil dominação – se é que não seja redundante, afinal todas formas de dominação são desprezíveis –, e aqueles que não se ‘adaptavam’ eram simplesmente mortos.

Desse mesmo modo, acontece também em Gilberto Freyre, só que mais ligado à questão do negro. Em Casa-grande & Senzala, o autor trabalha a dualidade entre o nobre e o pobre, e defende que a miscigenação é algo positivo, é a nossa característica, e é o melhor do Brasil. Todavia, mais uma vez, embebido pelo racismo latente de quem é filho de família abastada dona de engenhos de cana, traz uma resposta tola a uma pergunta inoportuna:


“É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime” (1952, pág. 338).


Por que o culpado seriam o negro ou o indígena? Freyre cria um tipo de absolvição para alguém que não cometeu crime nenhum, o autor redime os colonos de seus atos transferindo-os para as vítimas, como se estas fossem as culpadas de os invasores não conseguirem conter seu instinto sexual predador.

Desde o começo os colonos instauraram seu império de horrores e perseguições aos povos nativos, e não satisfeitos, arrancaram os povos africanos de suas terras para poder exercer o completo domínio sobre eles. Assim, mais uma vez, percebe-se quais foram os pilares para a construção da nação: estupro, abuso de poder, dominação compulsiva e violenta, etc. A nação não pode ser criada da forma como esses autores propõe, aliás, ela não pode ser criada, ela (in)existe. A tragédia que gerou o Brasil e toda a América, infelizmente é vista como um bem, partindo do pressuposto de que os colonos europeus trouxeram a civilidade para “um” povo que jazia na barbárie. E esta é a postura que o brasileiro enquanto homem cordial assume diante da situação de seu país.

Atualmente mais notável tem-se feito esse comportamento, quando se vê a forma como a sociedade trata a questão do racismo. De repente “ressurge” a discussão do racismo, e diz-se que o racismo reapareceu. Entretanto, ele nunca deixou de existir, simplesmente, parou de ser discutido e quando acontecem coisas que deixam claro o preconceito, a sociedade assusta-se. O que aconteceu na verdade, é que o racismo, ou a discussão a respeito dele, tornou-se inerte ao longo dos anos, principalmente após a II Guerra Mundial em que foi criado um estereótipo de racismo ideal, as pessoas passaram a entender como racismo somente aquelas manifestações explicitamente preconceituosas, como é o caso dos skinheads.

Todavia é notório que o racismo nunca deixou de existir e tampouco ficou inerte durante tantos anos. O que aconteceu é que a sociedade anestesiou-se de forma a cegar-se e fingir que nada acontecia. Segundo João Baptista o problema gerador do racismo é o etnocentrismo, mas é irônico, afinal, o mesmo autor trata a questão usando todos os pontos do etnocentrismo estadunidense:


“A América do Norte que, como se sabe, foi um dos paladinos do antietnocentrismo na Segunda Guerra, ao resolver-se, ainda durante o conflito, por uma auto-análise, acreditava que esse trabalho somente poderia ser feito por um estudioso estrangeiro eqüidistante da questão racial americana e pouco emocional” (1996, pág. 20).


Os Estados Unidos realmente combateram o etnocentrismo da Alemanha durante a guerra, no entanto, também é um país etnocentrista, pois impõe sua cultura de massa ao mundo, praticando um imperialismo gritante. Além do mais, é um país em que a segregação social é mais do que clara, chegando a ponto de, nas cidades, haver bairros de brancos e bairros de negros, igrejas de brancos e igrejas de negros, e assim por diante.

A segregação racial é um aspecto que dita, na maioria das vezes, os níveis sociais de cada sociedade e, deste modo, marginaliza a população negra. É irônico pensar que alguém acredite verdadeiramente que a discriminação racial retornou, como que se tivesse ressuscitado. A realidade que a nação tenta viver hoje, nada mais é do que uma fantasia, afinal, praticar a discriminação e não perceber/ assumi-la é enfadonho. O homem está tão absorto pelas “verdades” do mundo que não percebe a triste situação em que está inserido.

Contrapondo-se a todos esses autores está Homi Bhabha, que no livro O Local da Cultura, mostra que o discurso da desconstrução é mais uma busca de minar esse discurso essencialista. Bhabha faz a linguagem escorregar, ele vai deslocando sentidos, o que podemos perceber quando dá nome a um capítulo de seu livro de “DissemiNação – O tempo, a narrativa e as margens da nação moderna”. O autor faz um jogo com as palavras, que dão à expressão um sentido inigualável, Bhabha vai além de Derrida, que diz que a nação é resultado de uma dupla ejaculação criativa (di/ semêm/ ação), e pontua a idéia de que a nação possui dois sentidos (di/ sema/ nação), que podem ser a pedagogia ou a performance.

Bhabha mostra que a idéia de nação é feita de retalhos, os fragmentos são fortuitos, uma nação é algo totalmente vazio.


“Os fragmentos, retalhos e restos da vida cotidiana devem ser repetidamente transformados nos signos de uma cultura nacional coerente, enquanto o próprio ato da performance narrativa interpela um círculo crescente de sujeitos nacionais” (1998, pág. 2007).


A nação é algo construído pelo imaginário popular e autenticado pela intelectualidade, se é que assim se pode chamar. O discurso da ação é repleto de preconceitos e estereotipagens, que tentam definir uma nação que na verdade não existe. A unidade é algo inalcançável, e deste modo, não há como tais discursos decretarem a complexidade dos povos de uma determinada sociedade, seja ela a brasileira, a estadunidense ou a italiana, a exemplo.

Roberto DaMatta, rebate a idéia de Bhabha, pois foge da historicidade e passa a buscar a origem da nação. No livro A Casa e a Rua, DaMatta propõe uma ênfase às relações, ele diz que não há como entender o majoritário sem entender o minoritário, e é essa relação que permite entender o sistema, que é inconsistente. Em Filosofia um sistema é consistente quando ele explica certas coisas e não explica outras, dessa forma: a ciência é consistente, pois é um sistema falível de erros; e a religião é inconsistente, pois explica tudo. Através da linguagem o autor cria um sistema totalmente inconsistente e altamente absorvente, um sistema que não te deixa sair, ele o suga, ou seja, é algo sem saída. O ‘e’ nunca é uma conjunção aditiva realmente, é um conflito não declarado, não é uma questão de ordem.

Apesar de contraditório e da advocação que faz, ele é favorável às ações afirmativas, o que é surpreendente, pois trata a questão da nação de forma muito peculiar, trazendo à luz do tradicionalismo questões como a feminina. O capítulo central de seu livro é o segundo, no qual mostra sua tese do “Com quem você pensa que está falando?”, demonstrando que as relações brasileiras firmam-se nas relações verticais de poder. Esta é uma frase elitista que pressupõe uma autodeclaração de superioridade perante os outros e que coloca o sujeito acima da lei. A partir daí faz uma contraposição ao EUA, mostrando que lá a frase definidora é “Quem você pensa que é?”, que imediatamente remete a uma questão de direitos e coloca os dois lados em equivalência, ou seja, implica num abuso de autoridade.

A ideologia igualitária nunca fez sucesso no Brasil. Em vista de acabar com as tensões do dualismo, DaMatta cria o triângulo, onde o terceiro é o ponto de meditação entre os outros dois. O conceito de pessoa diz que esta é um ser relacional, algo que faz sentido com relação a outros com quem dialoga. A pessoa, portanto é a família/ grupo. O cidadão para Roberto DaMatta, está próximo a outra figura do direito, o homosasser, que pode ser morto mas não pode ser julgado. Em sua fala parece haver escondido algo como: “esse é um Estado de exceção, não de direito”. Nunca questiona quem usa a fala da família para infringir a lei. O cidadão não é o sujeito do direito, mas o sujeitado a um Estado de exceção.

Confrontando Roberto DaMatta, está Mônica Pechincha, que diz que o autor teria esquecido aspectos cruciais da nação, e que há uma forte vinculação entre o fundo de suas análises e o discurso freyriano. Pechincha adota um discurso ideologia diferente e entende a nação como “um espaço que gera signos de identidade sob os quais se organizam as reações entre pessoas e grupos” (2006). Deste modo acredita que o discurso da nação aponta, nos signos de sua identidade, as identidades daqueles diferenciados dentro dela, afinal a nação mesmo com um discurso homogeneizador não esconde as diferenças que cria. A autora explica que a idéia que o conceito que adota de discurso tem como conseqüência que nenhum discurso possa separar-se, ficar neutro ou fora de um sistema, mesmo que esta seja um discurso científico.

Para a autora, o conceito nação foi aderido pela antropologia, pois se centrou na perspectiva do símbolo e da identidade. O discurso da nação é o marco das identidades modernas e “as diferenças dão-se sob processos ideológicos de reconhecimento e atribuição num campo disputado de autoridade discursiva” (2006). A nação brasileira construiu a idéia de sua unidade pela relação entre diferentes elementos culturais, que se configuram no mito de sua fundação, e é entende-se como sua narrativa mestra. Assim, a diferença cultural não se explica por uma questão de associação, referes-se a discursos redutores do outro, já que o poder e atribuição ou reconhecimento da diferença não é distribuído homogeneamente.

A partir disso, pode-se inferir que o discurso da nação pressupõe diferenciação social, e que está profundamente enraizado no discurso da antropologia brasileira. Do mesmo modo, pode-se refletir sobre a questão infantil, pois a construção do discurso começa, sem dúvidas, na infância, logo a necessidade de averiguar se há real necessidade de uma criança ler certas literaturas, a exemplo Monteiro Lobato. No Sítio do Pica-pau amarelo Lobato, com sua visão progressista extrema, usa imagens de “reinos” para criar uma fantasia de mundo perfeito, este que é um mundo permeado por preconceitos, no qual o progresso justifica tudo. O autor mostra uma visão extremada em que a violência é o ponto forte, e assim, legitima a não aceitação das diferenças sociais.

Logo, nação é um conceito que desconstrói às sociedades, deixando-as expostas a todo tipo de preconceito que, é claro, existe. A nação é apenas um discurso de uma camada social que legitima a sobreposição de idéias, é uma forma de dominação. O discurso da nação pressupõe que algo/ alguém esteja abaixo ou indevidamente posto, é um discurso extremamente progressista que infere que a sociedade seja qual for, é uma máquina e como tal não deve ser questionada, é uma unidade. Não há dúvidas de que isso não existe, porquanto não existir nação alguma. As sociedades, povos, etc, não são unidades, como um conjunto de algarismos na matemática, são, pelo contrário, grupos totalmente diferenciados e que devem ser aceitos como tal. Da mesma forma o Brasil não é uma nação e nunca será, assim, deve-se parar de procurar por algo que transcende as atribuições humanas. Deve-se começar a pensar numa solução para situações emergenciais, como a questão da universidade pública não mais ser palco de discussões sociais, mas um local onde somente a elite pensa e mais uma vez impõe suas regras sórdidas cheias de preconceitos e “com que você pensa que está falando?”.


Bibliografia consultada:

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala, pp. 307-396. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1952.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil, pp. 61-146. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1998.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro/ A formação e o sentido do Brasil, pp. 19-63. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
BHABHA, Homi. O Local da Cultura, pp. 198-238. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
MATTA, Roberto da. A Casa e a Rua. Rio de Janeiro: Rocco Editora, 1985.
PEREIRA, João Baptista Borges. O retorno do racismo. In: Raça e Diversidade, pp. 16-27. São Paulo: Editora da USP, 1996.
PECHINCHA, Mônica Theresa Soares. Brasil no discurso da antropologia nacional, pp. 17-68.Goiânia: Cânone, 2006.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1931.



Artigo elaborado em Novembro de 2007.

3 comentários:

Ed Garcia disse...

Racismo é também uma desculpa para conter competidores latentes.

Ed Garcia disse...

Racismo é uma Atitude para conter competidores em potencial.

Ed Garcia disse...

Passado é história.
Futuro é Mistério.
Presente é uma dádiva! Por isso se chama presente.

Obrigado Senhor!