Por Juliana Marton, Pollyana Lima e Gabrielle Motta
Da invasão portuguesa à invasão ideológica estadunidense nada mudou em essência, ou melhor, temos menos índios e mais mestiços agregados à miséria do Sertão.
A nação que chamamos Brasil provou, intimamente, da ganância dos ocidentais que não pouparam o desenvolvimento de métodos para aperfeiçoar a dominação. O meio mais comum era bem simples: a morte. De forma brilhante, no primeiro capítulo, do livro “A organização social dos Tupinambá”, Florestan Fernandes relata a distribuição geográfica e o modo como foram expulsos esses pioneiros do Sertão.
Verdadeiros donos da terra, já no século XVII, os Tupinambá eram escassos na região próxima ao litoral do Rio de Janeiro, e ainda assim, o que fizeram-lhes foi à imposição da escolha entre o genocídio e a migração para o interior do país. O desprezo pelo referido povo indígena comumente afetava os documentos históricos disponíveis desde o século XVI, reduzindo à insignificância a averiguação da quantidade dos que ficavam ou daqueles que emigravam. Relatos de padres ligados à Companhia de Jesus mostram como os aborígines eram humilhados submetidos à catequização, e tratados como ‘coisas’, como se vê nesse trecho de “Cartas avulsas” do então padre Leonardo Vale: “casa houve onde morriam 90 e 100 peças” (grifo nosso). Os Tupinambá foram massacrados; seu povo, sua cultura, não faziam parte dos planos da Metrópole.Dessa forma, o Sertão, antes mesmo de criado, já se ampliava e cada vez mais, acompanhado sempre por um rastro de doença e miséria que perdura até os dias atuais. Norte e Sul receberam os fugitivos condenados à morte, apenas por serem o que eram: índios, isto é, ‘selvagens’ livres do título de serem humanos. Como sempre foi de praxe, silenciam aquilo que deixe menor o ego ou que tire a ‘pureza’ da cultura dominante, seja ela brasileira ou de qualquer outra nacionalidade.
Em busca de progresso e ordem os exploradores e compatriotas, principalmente esses envolvidos com a burocracia governamental, fizeram da irracionalidade e do massacre válvulas de contenção daqueles, que segundo a visão européia ocidental, não eram civilizados. O autor Francisco Foot Hardman na obra “Morte e progresso” professou em um resumo histórico o monopólio da força e a destruição física e moral dos sertanejos, mostrando com Canudos, como a República reprime uma revolução.
“Canudos não se rendeu”, citação clássica de “Os Sertões” de Euclides da Cunha, mostra a visão absurda que se tem da Guerra de Canudos confirmada por Eduardo Bueno no livro “Brasil: uma História/ A incrível saga de um país” (vale lembrar que é um livro adotado no ensino médio) ao dizer que “em Canudos lutou-se sem razão”. Estudado como revelador da alma do sertanejo, Euclides da Cunha somente demonstra a inferiorização que se impele ao Sertão. Sertão este que não existe senão nas mentes discriminatórias da sociedade brasileira. Mesmo sendo um país de miscigenação intensa, o Brasil ainda consegue sustentar essa segregação total, afinal não é somente racial, mas social e também regional.
Sob uma ótica analítica, pode ser postulada a idéia de que o Sertão e seus sertanejos estão relacionados à ausência da condição de desenvolver a atividade humana com liberdade de se expressar em suas peculiaridades étnicas e culturais. O que pode também ser compreendido é o fato de que as dimensões do Sertão e a caracterização de sertanejos têm sido ampliados numa linha do litoral para o centro e do sul para o norte do país.
Os aglomerados de pobreza e exclusão se estendem ainda mais quando são somados os indígenas aos negros. Caso destes que também não é diferente daqueles. Richard Price, em seu artigo “Palmares como poderia ter sido” (in Liberdade por um fio/História dos quilombos no Brasil), oferece mais uma evidência de como a cultura dominadora suprime e/ou ridiculariza a figura do negro. O caso Palmares, especificamente, talvez seja a maior representação da resistência negra no Brasil; mesmo assim, não conseguiu a manifestação de um esclarecimento relevante sobre a administração, censo e desenvolvimento do núcleo quilombola. A profusão ideológica cultural conquistada em Palmares foi de abrangência realmente magnânima, segundo os poucos testemunhos que sobreviveram. Bem claro se coloca que não bastou a perseguição física, mas também destruição da memória e as suas formações de resistência.
Aliado a isso está a situação goiana. Goiás não perde em termos de mesmo módulo de execução de grupos indígenas e exploração de negros. Como diria Luis Palacin no artigo “A ausência do índio na memória goiana”, os historiadores goianos e a sociedade simplesmente silenciaram-se quanto à figura do índio na formação de toda a sociedade goiana, com sua participação cultural, econômica e social. O calar das vozes indígenas nada mais exemplifica a redução desse povo a um grupo de selvagens em condição humana. A explicação desse fato, segundo Palacin, são os preceitos morais hipócritas dos dominadores e da sociedade em geral. Com a dizimação de grande parte dos grupos Xavante, Caiapó, Acroá, Chacriabá, Canoeiro e Cherente, valores pregados, principalmente por missionários, efetuaram, com o respaldo da Igreja e da Coroa, uma crescente culpa na consciência social. Sinal que foi claramente manifestado no episódio do massacre da Mata do Café, feito contra os índios Avá-Canoeiro, em que todos os envolvidos negam qualquer conhecimento do fato, ou seja, há “um silêncio quase impenetrável” (Palacin, 1997).
Assim também os negros que vieram para Goiás são ocultados dessa memória. Estes eram profissionais especializados em mineração, muitos deles não vieram diretamente da África, eram ladinos (nascidos no Brasil). Como coloca Mary Karash em seu artigo “Os quilombos do ouro na Capitania de Goiás” (in Liberdade por um fio/História dos quilombos no Brasil), os quilombolas, em sua maioria, eram escravos garimpeiros que continuaram a praticar seu ofício. Em geral, após reunirem uma certa quantia em ouro, retornavam às cidades e negociavam suas alforrias. Eram grupos transitórios, constituídos geralmente por homens adultos.
Esses negros sofreram forte repressão, quando não pelas bandeiras, eram atacados pelos índios ou pelos capitães-do-mato, além de ‘no tempo das águas’, enfrentarem a ameaça constante da malária e, a todo o momento, uma porção de insetos e ainda cobras e onças. Quando recapturados eram punidos com uma severidade atroz, e aqueles que sobreviviam aos castigos eram devolvidos ou vendidos.
Dizimação e genocídio representam conseqüências de uma causa explicável e inadmissível. O Bandeirantismo embasava-se na necessidade de mão-de-obra para a manutenção de empreendimentos agrícolas na região paulistana. O que no início era cômodo ganhou aspecto ainda mais lucrativo. Além do apresamento de indígenas, a extração de metais preciosos também adquiriu a atenção da força econômica dos empreendedores de São Paulo. Esse deslocamento, John Manuel Monteiro revela em detalhes na obra “Negros da Terra”. O texto explica a redução da presença de mão-de-obra nativa na região, devido às crescentes epidemias e mortes dos indígenas; agora era necessário buscar mais selvagens para fazer o crescimento das instalações paulistas.
Desse modo, o pensamento de Florestan pode ser retomado, quando verificamos que para construir o Sertão brasileiro, nativos se deslocaram, e para concretizar o rastro de abuso contra o ser humano, a elite colonial buscou com seus próprios métodos (bandeiras) a disseminação da dor, da aridez e da aspereza das realidades no Sertão. Tomando-se como exemplo a destruição empreendida no Nordeste à região do Guairá, na qual a violência ficou absolutamente visível, como descreve Monteiro.
Agora, nota-se a necessidade de elucidar e apontar questões sobre o Sertão. Pontualmente, no panorama ideológico atual, o sertanejo é dotado de um estereótipo cultural, que leva em conta a suas atividades cotidianas, seu modo de falar, vestir, sua opção religiosa e outras peculiaridades. A materialização dessa idéia foi retratada por Euclides. O autor moldou a figura do povo do Sertão a partir de paradigmas deterministas sobre o meio, a hereditariedade e a influência total sobre o homem. Focalizou o chamado evolucionismo cultural, no qual a cultura do sertanejo é a estagnada e marginalizada no conjunto de indivíduos do país.
Para poder discutir questões que envolvam a cultura, observa-se a presença de conceitos solidificados que permitem a referida marginalização. Estes conceitos se resumem ao padrão cultural. Quem disserta sobre isto é Ruth Benedict, no livro “Padrões de Cultura”. Ela explica a tendência das pessoas em generalizar algumas idéias, considerando que estas se aplicam a qualquer povo e época. Claramente, Benedict elucida uma atitude errônea, porque é fato: existem diferentes formas de manifestação cultural em diversos momentos e rituais cotidianos. Um exemplo dado pela autora no referido livro são os ritos de passagem como a puberdade.
Nessas questões Clifford Geertz também fez relatos sobre a disparidade cultural e a forma de se postular os julgamentos de superioridade do mundo ocidental. Antas de dogmatizar os níveis culturais, como é dito em “Interpretação de Culturas”, havia a busca de um universal empírico, porém a tendência à hierarquização foi inevitável. O parâmetro ocidental, particularmente europeu, pautou o julgamento das manifestações culturais de outros povos.Tudo possuía um embasamento em caracteres psicológicos e biológicos, em primeira instância. Retoma-se assim, que desde o início do século XII, estudos buscaram a legitimação dos atos de dominação promovidos pela expansão comercial e marítima. Novamente, voltamos à invasão do território brasileiro e ao genocídio daqueles considerados como humanidade.
Geertz também apresenta uma forma não-habitual de se pensar a cultura. Ela se resume em mais uma maneira de controle social, com a instauração de regras e comportamentos considerados os ideais pelos manipuladores. O autor ainda expõe que o ser humano é um ser dependente e que precisa de regimes exteriores para ordenar seu comportamento. Para entender a humanidade é preciso voltar-se às suas particularidades, mas de maneira respeitosa, afinal “tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos indivíduos sob a direção dos padrões culturais” (Geertz, 1993).
Transpondo esta mesma problemática para o século XIX a Sociologia e o Cientificismo aprofundaram ainda mais os abismos ilusórios que proclamam a taxação de povo mais ou menos evoluído. A Biologia e sua Medicina fizeram do ramo científico uma via argumentativa da morte de indivíduos chamados inferiores. É nesse contexto que idéias de Eugenia se movimentam e justificam a dizimação dessas pessoas (se ao menos fossem consideradas como tal). O seu desencadeamento se deu no decorrer do século XX, permeando a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, os sertanejos já se deslocaram do estereótipo comum. O que pode ser afirmado é o fato de o mundo ocidentalizado ser o Sertão do mundo ocidental.
Levando em conta uma outra divisão, pode ser analisada a marginalização dentro do Sertão ocidentalizado: aqueles que ainda se vêem imunes à exclusão e os excluídos de condição humana. Nessa parte considerada inferior pela padronização cultural, casos de morte e sobrevivência em locais tão castradores de mobilização, e que digerem toda e qualquer oportunidade de construir algo realmente justo, são constantes e revelados em forma de narração no livro “Caminhos dos Gerais” de Bernardo Élis, uma vez que o conceito de justiça esteja ligado à condição de ser um ser humano com escolhas e capacidade de efetuá-las.
A mitificação do Sertão/ Sertanejo
O Sertanejo, como diria Euclides da Cunha, "é antes de tudo um forte"? Ou Sertanejo são todas aquelas pessoas marginalizadas pela sociedade, aquelas que sofrem uma discriminação torpe da sociedade e não têm sequer o direito de manifestar sua inconformação?A imagem que se criou ao redor desse termo foi a de um 'caipira', tosco, de aspecto disforme e com um mínimo de intelecto, ou seja, o personagem "de uma narrativa mítica sobre a conquista da civilização pela nação brasileira." (Suárez,1998). Não há nenhuma preocupação com a subjetividade do Sertanejo de Euclides da Cunha, ele é somente um forte.
A estereotipagem feita ao redor dessa 'figura' é real e, além de tudo, triste. Rotular pessoas por não terem oportunidades que a elite teve é a maior prova de que o País, em toda sua soberania, só regride; embasando-se na Morte como fonte da evolução social. "Morte e Progresso", um paradoxo, mas a realidade de uma nação que teve como um de seus pilares o estupro da terra, dos povos aborígines, da vida. A modernidade está na destruição do Sertão para a emersão da Civilização.
Regiões inóspitas são a principal visão que vem a mente quando falamos do Sertão. E aí é que está o equívoco, pois o Sertão está em todo lugar, e principalmente nas grandes metrópoles onde se encontram os maiores casos de segregação social. O Sertanejo é o 'Sêo João da esquina’ que olhamos todos os dias ignorando sua existência. O Sertão é o verdadeiro Brasil, o lugar em que se depositam todos os estigmas e paradoxos possíveis; o lugar onde os jogos esportivos merecem mais atenção do que pessoas que vivem à míngua isoladas.
À margem estão, e à margem vão ficando, como coloca a professora Mireya Suárez no artigo "Sertanejo: um personagem mítico" (in Sociedade e Cultura). Ressaltando a dificuldade de escassez bibliográfica que se encontra a respeito do Sertão/Sertanejo, Suárez mostra que, em si, essa carência de informação renova o fato de, em nossa percepção, não haver nada no Sertão, isto é, “um espaço fora do tempo”. E esse pensar faz com que os sertanejos sejam derrotados e banidos da 'civilização'.
Do mesmo modo coloca Foot Hardman, concluindo que até os grupos na sociedade que são ativos estão tão embebidos nessa monolitização que não conseguem desprender-se dessa visão. Visão que num ato de extrema crueldade foi capaz de atear fogo a um ser humano, e depois se inocentar com a desculpa da barbárie civilizada. Que é também perceptível em “Caminhos dos Gerais” de Bernardo Élis, onde há sempre uma animalização das pessoas, colocando-se uma idéia fortíssima de impossibilidade de historiar o Sertão.
No conto “Ontem como hoje como amanhã como depois” (in Caminhos dos Gerais), a personagem Put-Kôe é a materialização de tudo isso: ela não possui vontades próprias, sendo assim submetida a um ‘casamento’ forçado em troca de um fornecimento de cachaça para seu pai Man-Pôk. A índia não pede ou fala, tornando-se uma boa companhia para o garimpo. O problema é quando ela não mais satisfaz o cabo, e então é morta a sangue-frio. Sendo este mais um retrato dessa história esquizofrênica que escreveu o Brasil.
O pensamento brasileiro sempre foi escravista, e esse pensamento permeou intensamente a formação desse Sertão. Em “Negros da Terra” essa realidade fica extremamente clara, o autor mostra o que é a ‘guerra justa’ na prática, uma desculpa para a escravização, no caso dos índios. O comércio de indígenas nunca foi importante, o que se pretendia realmente era a destruição dos povos, para os paulistas era necessário “gastar as gentes” (frase de um jesuíta), isto é, usá-los até a morte.
A riqueza do Sertão eram os povos aborígines, e essa preciosidade nos foi tirada. O pior é a maneira como o fizeram, o que, influenciando a formação da consciência social do País, aboliu o censo de segregação da população. E assim, da forma como expôs Guimarães Rosa, apesar de também discriminar esse personagem e essa região, “o Sertão está em toda parte” (Grande Sertão: Veredas), não podendo, portanto, haver distinção entre pessoas.
Bibliografia consultada:
SUÁREZ, Mireya. Sertanejo: Um personagem mítico. In: Sociedade e Cultura. Goiânia: Ed. da UFG, 1998.
RAMOS, Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1995.
HARDMAN, Francisco Foot. Tróia de Taipa: Canudos e os Irracionais. In: Morte e Progresso/ Cultura Brasileira como apagamento de rastros. São Paulo: Ed. da Unesp, 1997.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.
PRICE, Richard. Palmares como poderia ter sido. In: Liberdade por um fio/ História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
KARASCH, Mary. Os quilombos de ouro na Capitania de Goiás. In: Liberdade por um fio/ História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FERNANDES, Florestan. A distribuição espacial do Tupinambá. In: A organização social dos Tupinambá. Brasília: Ed. da UnB, 1988.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
ÉLIS, Bernardo. Os melhores contos. São Paulo: Ed. Global, 1996.
BENEDICT, Ruth. A diversidade das culturas. In: Padrões de cultura. Lisboa: Livros do Brasil, 2000.
GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In: A Interpretação das Culturas, cap.2, pp.45-66. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
PALACIN, Luis. A ausência do índio na memória goiana. In: Ciências Humanas em Revista, v.3, n.1/2, pp.59-70. Goiânia: Ed. da UFG, 1992.
Artigo elaborado em Novembro de 2007.
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