segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A dúzia está completa!

Desaparecida solteirona em Elsom, litoral sul do país. Tudo leva a crer que, o polígamo voltou à ativa com os casamentos de fachada após os cinco anos de prisão
Por Juliana S. Marton

A cidade de Elsom, que abriga uma das mais belas praias do litoral inglês, foi o cenário de mais uma das bizarrices de Mortimer Ellis, o polígamo que ficou famoso por cometer fraude contra suas esposas. Após cumprir cinco anos da pena que lhe fora imposta, Ellis voltou a encontrar uma vítima, a solteirona Eleanor Porchester, 54 anos, que vivia com os tios desde sua infância. A polícia continua as buscas por Eleanor, que escapou pela manhã deixando apenas a mala pronta e um bilhete para os tios, no qual explica o motivo da fuga.

Na mensagem, Eleanor diz que a escapada foi necessária, devido à índole conservadora de seus tios, que nunca permitiriam que ela se casasse. Ela também pedia para que os tios encaminhassem sua bagagem, que deixara pronta, para a Estação Vitória. No bilhete, Eleanor não cita o nome de seu recente noivo, mas a polícia chegou à conclusão de que seja o suspeito anteriormente condenado devido às condições do desaparecimento.
Um amigo da família, o novelista William Somerset Maugham foi quem deduziu o caso, a princípio. Maugham, que estava de passagem por Elsom, devido a uma forte gripe que o acometera na semana anterior, alega ter conhecido o suspeito e até fumado algumas vezes com Ellis. O escritor contou à polícia que conheceu o golpista coincidentemente, num dia nublado num dos bancos da avenida principal da cidade.
Gertrudes Saint Clair, a tia da vítima fujona, não pôde dar entrevistas devido a seu estado de saúde. A pobre mulher, que chorava efusivamente enquanto a polícia recolhia depoimentos para solucionar o desaparecimento, sofre com horríveis dores na região lombar, que aumentaram devido ao estresse de ver a filha de criação perdida.
O tio da vítima, Edwin Saint Clair, alega que na manhã do dia fatídico, Eleanor mandou avisar ao casal que estava tendo um acesso de enxaqueca terrível e que não deveria ser incomodada. Edwin afirmou que esse tipo de situação sempre ocorria, e que somente no período da tarde a esposa tomou conhecimento de que a sobrinha não estava mais em seu quarto.
A família estava de férias na cidade há cerca de uma semana, e já levava uma rotina de afazeres e deleites repetitivos. De acordo com Maugham, ele conheceu o casal e a sobrinha no hotel Dolphins, onde todos estavam instalados. Após alguns dias e prévias conversas, passou a acompanhar o casal Saint Clair e a sobrinha nos serões após o jantar.
O escritor conta que, na tarde em que Eleanor desapareceu, ele encontrou-se com Ellis na tabacaria de Elsom em um de seus passeios matinais. Segundo ele, o suspeito afirmou estar de saída para Londres, onde deveria resolver alguns negócios. “Ellis estava menos maltrapilho naquela manhã, graças às duas libras que o havia dado dias antes”, afirma Maugham
No meio da tarde, quando retornou ao Dolphins, sua presença foi solicitada às pressas no quarto 27, pelo senhor Saint Clair. Só então, o escritor tomou conhecimento da fuga de Eleanor, a quem descreveu com uma beleza que lembra as estátuas gregas, tamanha perfeição e linearidade de seus traços. Maugham chegou a se assustar quando, ao conhecer a vítima em circunstância anterior, percebeu que ela já era velha.
O novelista disse à polícia, que só depois que Edwin contou-lhe sobre tudo o que havia acontecido durante a manhã e o bilhete, pôde fazer as conexões e chegar ao veredicto de que Eleanor provavelmente fugira com Ellis. Quando a polícia argumentou que Ellis só se casava com solteironas e viúvas que possuíssem grandes quantias guardadas, o tio da vítima relembrou que a sobrinha possuía cerca de três mil libras. “Uma ninharia”, como nomeou o comerciante, que é dono da mais antiga negociadora de chá de Londres.
A polícia deve continuar as buscas para encontrar Eleanor Porchester. A tia da vítima acredita que Ellis, ou quem quer que a tenha levado, talvez esteja somente interessado no dinheiro da sobrinha, e nem se case de fato com Eleanor. O casal Saint Clair sente-se extremamente envergonhado com o ocorrido. Em um acesso de fúria, Edwin chegou a ordenar à esposa que nunca mais mencione o nome da sobrinha em casa.
Maugham que está convencido de que seja mais um dos casos do polígamo, tentou acalmar a situação do casal Saint Clair, mas em vão. “Estou certo de que ele se casará com ela. Sempre o faz. Casará com ela na igreja!”, comenta o escritor. Enquanto a polícia não consegue mais pistas, as conclusões que se tiram são de que, enfim, Mortimer Ellis, o polígamo golpista, conseguiu alcançar seu objetivo: a dúzia está completa.

O Bilhete:
Em primeira mão tenha acesso ao bilhete que Eleanor Porchester deixou ao casal Saint Clair.
“Meus estimadíssimos tio Edwin e tia Gertrudes.
Quando receberem esta eu me acharei longe daqui. Vou casar-me esta manhã com um cavalheiro a quem muito estimo. Sei que faço mal em fugir deste modo, mas receava que tratassem de criar obstáculos ao meu casamento, e como não há nada que me possa fazer mudar de idéia julguei que pouparia muitos aborrecimentos a todos nós se saísse sem lhes dizer nada. Meu noivo é um homem de hábitos muito retraídos e, devido a uma longa residência nos trópicos, não goza perfeita saúde; acha, por isso, muito preferível que nos casemos em segredo. Quando souberem o quanto me sinto venturosa, espero que me perdoarão. Façam o favor de mandar a minha mala para a sala de bagagens da Estação Vitória.

Com toda a afeição de sua sobrinha
Eleanor”

Conheça a cidade de Elsom – O cenário do estranho caso:
Elsom fica no litoral sul da Inglaterra, próxima a Brighton. Possuidora de um encanto que remete á época georgiana, a pequena cidade não é das mais agitadas do litoral inglês. Um lugar tranqüilo e barato, mais recomendado à famílias calmas e/ou viajantes que procurem sossego. Contudo, no verão a cidade muda um pouco de figura, dando lugar a moços de casaco esporte e praias repletas de pessoas. O Dolphin, hotel da cidade, é um lugar aconchegante, onde os turistas são sempre bem recebidos. Lá se serve um bom vinho do Porto e os hóspedes podem se recolher ao hall após o jantar e desfrutar de um delicioso chá. Alguns quartos possuem ainda vista para o mar. Como em todo interior, a atração maior é a avenida da cidade, que possui bancos ao longo de toda a via muito sentimental e lânguida que se estende ao longo da praia. Elsom dispõe ainda da presença da Igreja de São Martinho, que traz belas recordações à maioria dos casais da cidade, e também alguns que ali estiveram de passagem. Há também lindas vielas para o deleite dos apreciadores da arquitetura antiga.

Um Homem Supercasado
Não foi a toa que Mortimer Ellis escolheu Elsom para, teoricamente, seu último golpe. Foi exatamente neste litoral onde tudo começou. Segundo confessou a William Maugham, em seu primeiro encontro casual com o escritor, casou-se na Igreja de São Martinho. “Um casamento muito feliz, foi o que ele me disse”, completou Maugham.
O novelista conta que Ellis estava bastante malvestido quando o encontrou. “Usava um sobretudo preto, leve, e um chapéu-coco um tanto maltratado”, afirma o escritor. Foi dessa mesma maneira que sucederam os demais encontros entre os dois.
Maugham sempre o encontrava em circunstâncias inusitadas. “Foram três encontros. Da segunda vez, coincidentemente, antes de topar com o cavalheiro, encontrei-me com a Srtª Porchester. Mas, não fiz conexões no momento”, conclui.
Mortimer Ellis ficou conhecido por se casar onze vezes e em todas elas, deixar a esposa após alguns meses de matrimônio com as mãos abanando. “Citou-me Shakespeare quando lhe perguntei como conseguia pôr as mãos no dinheiro das pobres mulheres. Disse que era tudo devido à cobiça de suas então esposas”, relembra o escritor.
A desculpa de Ellis é que ele dá e deu romance a todas as suas ex-mulheres. De acordo com Maugham, para o golpista todas as mulheres desejam casar-se, ainda mais na idade em que estavam suas vítimas - solteiras ou viúvas entre 35 e 50 anos de idade. “Ele disse que trouxe felicidade e esplendor a onze existências que não sonhavam ter nunca mais um ensejo disto. Sim, foram exatamente estas as suas palavras”, recorda.
Contudo a estranha felicidade de Mortimer Ellis estava com os dias contados. Quando ia casar-se pela décima segunda vez, uma antiga esposa o viu e deu parte à polícia. Ellis foi preso na véspera da cerimônia em que desposaria uma tal Srtª Hubbard, que aparentemente possuía cerca de duas mil libras guardadas.
Todas as vítimas de Ellis eram mulheres de certa respeitabilidade. “Nos recortes de jornal que me entregou vi que uma delas era filha de médico, a outra de um pastor. Já outra era proprietária de uma pensão, havia uma viúva de um caixeiro-viajante e também uma modista aposentada”, afirma Maugham.
O engraçado dos casos é que a maioria das esposas declarou no banco de testemunhos que havia sido feliz durante o casamento. Três das vítimas, inclusive, pediu clemência a Justiça por Ellis, durante o julgamento. “Ele tinha certo ressentimento pelo modo como foi tratado pela imprensa. Chamaram-no de Desalmado Barba-azul e desprezível embusteiro”, conta Maugham.
O golpista foi condenado a cinco anos de cárcere os quais cumpriu até o último dia. Mas, o vício fala mais alto e também a necessidade de completar uma dúzia, já que “considerava o número onze muito incompleto”, acrescenta o escritor.
Mortimer Ellis parece não ter arrependimentos pelos golpes que aplicou deliberadamente em onze mulheres. “Disse em certo ponto de nossa conversa que, só se arrependia de não ter completado uma dúzia”, arremata o escritor”.

Porchester além da fuga
A vida da Srtª Eleanor Porchester sempre foi muito agitada, ao que parece, e esta não foi a primeira vez que a sobrinha chocou os tios. A triste história de Eleanor se passou ainda quando a moça tinha entre 20 e 24 anos quando se apaixonou pelo primo, um advogado do foro e sobrinho da tia Gertrudes.
Os dois ficaram noivos, mas mentira tem perna curta, e logo ficou-se sabendo que o advogado mantinha relações sexuais ilícitas com a filha da lavadeira. “Foi um horror. Um horror”, assevera Edwin Saint Clair, tio de Eleanor.
Eleanor, todavia, agiu com extrema sabedoria. A então moça, devolveu a aliança, as cartas e a fotografia do rapaz a ele, dizendo que jamais poderia se casar em tais circunstâncias. A moça implorou ao ex-noivo para que este se casasse com a garota a quem tinha feito mal. Entretanto, o advogado não atendeu a sei pedido. “Ele nos deu uma grande decepção”, conta Edwin.
Tempos depois o rapaz ficou noivo de uma jovem de excelente família, cuja fortuna pessoal era de dez libras. Devido a sua índole moral, quando tomou conhecimento, Edwin Saint Clair escreveu à família da moça a fim de alertá-los sobre o advogado romântico. “Foi insolente. Disse preferir que seu genro tivesse tido uma amante antes do casamento a que viesse tê-la depois”, relembra Edwin.
A última notícia é de que os dois se casaram e que o ex-noivo de Eleanor tornou-se um dos juízes da Corte Suprema. “Jamais consentimos em recebê-los para visitas”, assegura Saint Clair. A filha da lavadeira também acabou por casar-se com uma pessoa de mesma classe e é hoje dona de uma taverna em Canterbury.
Eleanor Porchester sacrificou-se no altar da moral vitoriana e acabou tornando-se uma solteirona que, aos 54 anos, ainda morava com os tios e até então, nunca mais havia se interessado em ninguém. “Acho que o único proveito que ela tirou disso foi a consciência do ato de deixar o noivo em prol da mocinha”, afirma William Maugham, que tomou conhecimento da história em uma das noites em que acompanhava o Sr Saint Clair em seu habitual vinho do Porto após o jantar.

Reportagem elaborada para a disciplina de Produção de Texto de Revista, Outubro/2009. Texto baseado no conto "Para inteirar a dúzia", de William Somerset Maugham.