segunda-feira, 12 de abril de 2010

Meu conto 2

conto
Perfect timing
Por Juliana S. Marton

Ela estava distraída quando seu telefone tocou naquele final de tarde e o atendeu sem sequer dar atenção ao número que o identificador apontava na tela.


– Olá. – Disse ela alegremente, enquanto repassava as falas da apresentação da noite. Mas, quem falou do outro lado da linha não tinha uma voz jovial.

– Então, é hoje à noite? – O homem falava com pesar.

Lisa mesmo assim não esboçou alteração alguma em sua expressão e se alguém a observasse segurando o telefone imaginaria que a atriz falava com alguém muito próximo e importante. Ela desenhou um sorriso ao respirar, e num tom de voz sólido, porém quase inaudível, respondeu:

– É claro, querido. Até logo. – Lisa desligou o telefone com toda a delicadeza que uma moça poderia expressar. E então, voltou a repassar as falas do script.

Ao proferir cada palavra ali descrita, a atriz gesticulava e interpretava. Sentia-se como que no palco e logo o pano subiria de fato diante dela. Em seu camarim bem arrumado podiam-se ver duas belas poltronas estofadas com um tecido grosso e muito macio de um vermelho forte. Na verdade, tudo no cômodo trazia detalhes em vermelho e dourado.

Filha de atores consagrados, o caminho através das luzes foi traçado para a moça desde que nasceu. Seu talento, entretanto, não permitiu que muitos atrevidos questionassem o porquê de sua permanência nos palcos. Uma diva. A rainha dos salões e dos palcos. Amada e aclamada pelo público sedento por novas narrativas.

Naquela noite, Lisa encarnaria Sibyl, na adaptação da obra de Oscar Wilde. Em uma narrativa cheia de personagens masculinos fortes era de se esperar que ela se tornasse apenas mais uma das atrizes coadjuvantes. Contudo, a simples menção de sua presença no palco enlevava o humor da platéia e todas as luzes cediam a ela.

Repassando as falas, Lisa foi interrompida por uma leve batida na porta de seu camarim. Envolta em um robe fino e com os cabelos louros meio desgrenhados em um coque, Lisa ergueu os olhos quando Anete, a maquiadora da companhia, entrava no cômodo iluminado.

– Boa noite, querida. Repassando as falas mais uma vez? – Perguntou Anete.

– Oh, Anete. Estava aqui relendo esse script. Mas, cansei-me disso – disse agudamente deixando de lado as folhas e olhando diretamente para a maquiadora. – Pensei que não viesse mais. Quero alguém para conversar. Aquelas caras enrugadas de todos deram-lhe muito trabalho esta noite, ou somente as olheiras das ressacas acumuladas de Estevão é que a roubaram de mim por todo esse tempo?

Anete riu.

– Nem todos eles foram agraciados com sua pele, minha querida. E então, o que vamos fazer nesse rostinho hoje?

Anete era uma jovem senhora. Uma profissional em maquilagem e penteados que acompanhava a Companhia desde que fora fundada pelos pais de Lisa há 25 anos. Sabia tudo de todos, mas não era mulher do tipo que comenta a vida alheia. Todos a tinham como uma orientadora e ninguém conseguia fazer segredos diante de sua figura tão maternal. Ninguém menos Lisa, que conseguia extrair até os segredos mais ocultos e sujos de todos os membros da Companhia.

– Você decide, Anete. Leu O Retrato de Dorian Gray muito antes de mim. Como você imaginava a doce Sibyl? – Disse Lisa com meiguice. – Faça de mim a sua Sibyl.

Anete com um sorriso afável abriu a maleta marrom onde levava seu aparato de transformação. Diante do desafio que Lisa havia lhe imposto, seu sangue fervilhava e ela começou a buscar em sua memória os traços que esboçara em sua mente ao ler a obra há tempos.

– Verei o que posso fazer, minha querida.

As duas entraram em uma conversa sem fim, da qual Anete mal se dava conta do teor. A maquiadora estava vidrada em atender ao desejo de Lisa e não se atentava muito bem às perguntas que a atriz lhe fazia enquanto a produzia.

Todas as noites de apresentação eram da mesma forma. Lisa era a última da lista a ser maquiada e penteada. Quando Anete entrava em seu camarim, as portas adquiriam ouvidos e as janelas olhos, pois segredos eram mencionados como fatos irrelevantes ali.

– Pronto, minha querida. O que você acha? – Questionou Anete ao dar o último retoque no canto do olho direito e pegar um espelho para que a jovem atriz pudesse olhar sua nova identidade. – Como me saí?

– Anete! – Os olhos de Lisa perscrutavam cada detalhe que ela havia adquirido durante aqueles minutos, inerte. – Anete, você me transformou. Agora eu sou Sibyl, de fato. Você é uma artista, Anete. Uma verdadeira artista.

Anete não conseguia conter a satisfação ao ouvir as palavras que Lisa proferia. Ninguém mais na Companhia valorizava tanto seu trabalho. Ela se sentia inebriada.

– Você é muito gentil, minha querida. Precisa de ajuda para se vestir?

– Hoje não, Anete. O vestido é bem simples e já estou usando o espartilho. Você já fez muito por mim esta noite.

– Você é mesmo um encanto. Agora vá e arrebate a todos com sua beleza e doçura, Sibyl.

Anete beijou docemente a testa de Lisa e se retirou lentamente do camarim de sua favorita. Quando a porta encostou, a atriz levantou-se da poltrona e caminhou até a porta. Quase que imediatamente uma batida abafada ecoou na saleta. Lisa girou a chave duas vezes e caminhou até a porta de vidro que dava para os fundos do teatro. Um homem grande e meio sujo emergiu da sacada.

Perfect timing – Lisa disse tornando as costas para o homem e indo sentar numa cadeira dourada que estava posta bem em frente à penteadeira. – Anete acaba de sair.

– Eu estava ouvindo – a voz parecia preencher os espaços do camarim, apesar de baixa. – E então, quando?

Lisa ajeitava os cachos de algumas madeixas que Anete havia penteado, ignorando a presença do homem.

– Eu já respondi essa pergunta, creio – Lisa dizia com uma voz doce. O homem imenso parecia um rato acuado em uma gaiola cheia de gatos famintos. Os olhos da moça refulgiram quando ela olhou para ele através do espelho e completou a frase – Fique aqui até a segunda troca. Siga o combinado.

Ela se levantou da cadeira e deixou o robe cair delicadamente ao longo de seu fino corpo, dirigindo-se até o cabideiro. Pegou um dos vestidos ali dependurados e passou a vesti-lo. O homem, no canto da saleta, não se atrevia a olhar para ela.

– Venha até aqui e me ajude a fechá-lo, por favor – a voz da atriz era penetrante.

O homem foi até ela e fechou o longo zíper que se estendia ao longo das costas.

– Cuidado com o fecho, querido. Não vai querer estragar essa bela peça produzida especialmente para esta noite de glória.

– Perdoe-me... – Redargüiu o homem austero. – Minhas mãos são grandes demais para coisas tão delicadas.

– Claro. Só espero que sua rudeza não se manifeste no momento em que precisarei de toda sua cautela, querido.

Neste momento, com o zíper já fechado, Lisa virou-se para o homem e olhou bem no fundo de seus olhos redondos e claros. Os olhos da dama estavam vidrados. O homem estremeceu e virou sua cabeça, voltando para o canto escuro da saleta.

– Vejo-o mais tarde, querido – disse ela lançando um beijo no ar em direção ao homem amedrontado. – Tranque a porta, está bem – e se virando, saiu do camarim deixando para trás apenas resquícios de seu perfume.

Estevão estava parado defronte à porta do camarim quando Lisa saiu. Bêbado e inquisidor, tomou a atriz pela cintura e olhando-a firmemente, indagou:

– Com quem você estava conversando, doçura? – Seu hálito de álcool envolveu o ar ao redor de Lisa, o que não parecia afetá-la. Ela o beijou suavemente na face e respondeu enquanto ele, atordoado, soltava-a de seu forte abraço.

– Repassando falas, querido, como sempre faço. – Lisa segurou-o e começou a caminhada até o palco. – Vamos, a peça já vai começar. Logo o pano subirá e seremos novamente os protagonistas dos sonhos daquele público que nos idolatra. Venha, querido.

Estevão foi andando ao lado da atriz como uma criança. Logo chegaram ao backstage do teatro, onde todos já aguardavam para iniciar a representação. Devido à relativa idade, Estevão dessa vez não seria o protagonista da peça, mas a ele ficara incumbido o papel de Lorde Henry.

O pano subiu, e a platéia ovacionou os atores. No palco, um cenário que remetia a um estúdio de pintura. E lá estava Estevão, como Lorde Henry. Sentado num divã, com uma nuvem de fumaça ao redor de si. A peça desenvolveu-se normalmente, até que Lisa entrou em cena.

– Mamãe, mamãe, estou tão feliz! – a fala da atriz ecoava pelo salão enfeitiçado pela interpretação que ela fazia de Sibyl Vane.

Os atos seguintes foram marcados por suspiros e gritinhos de horror. Uma senhora na ala superior chegou a se sentir mal quando a pobre Sibyl foi encontrada morta no assoalho do camarim. O acontecimento que mudou o rumo da peça e levou todos a conhecerem o verdadeiro lado negro do protagonista. Após a cena do assassinato de Basil Halward, o pano fechou e houve um curto intervalo.

Com todos de volta ao grande saguão, o pano abriu novamente e a platéia em silêncio contemplou a cena que se desenvolvia ali. Um corpo jazia no centro do palco. Um punhal brilhava ao seu lado. A princípio, alguns desavisados acreditaram que aquilo fazia parte da peça. Mas, outros fãs da obra de Wilde estranharam o acontecimento. Não havia mortes àquela altura da história.

Quando Lisa entrou em cena chorando e gritando, todos começaram a perceber que algo estranho desenvolvera-se ali. Mas, quem era aquele amontoado de trapos e sangue jogado no tablado incólume, ninguém poderia responder.

– O que é isso? – Estevão surgiu de uma passagem à direita do palco e o burburinho na platéia começava a crescer. – Quem é, doçura? Quem é este aí?

Os olhos de Lisa estavam marejados. A maquiagem perfeita que Anete fizera já não esbanjava esplendor. Com o punhal em mãos e as vestes embebidas em sangue ela se levantou em um impulso e se atirou nos braços de Estevão.

– Não, não... Veja quem é. Olhe o que fizeram a... Não posso acreditar... Não posso...

Estevão arrancou o punhal prateado da mão de Lisa. A Companhia toda já estava no palco a essas alturas. A cena tornou-se ainda mais tosca quando, colocando Lisa de lado, Estevão abaixou-se e viu ali Anete enrolada em uma capa negra, suja e ensangüentada. Jamais a haviam visto usando vestes tão indignas de sua personalidade amável.

– Oh! É Anete, a maquiadora. Como? Por quê? – Todas as palavras soavam inapropriadas diante da situação. Estevão, bêbado e atordoado não conseguia digerir as informações.

– Minha querida Anete... – Lisa debruçava-se novamente sobre o corpo frio da mulher. – Quem pode ter feito isso, quem?

Os atores estavam chocados. Alguns, mais ávidos, corriam de um lado para o outro tentando encontrar pistas. Outros levantavam falsas memórias numa tentativa de encontrar o malfeitor. Algumas mulheres, mais frágeis, choravam compulsivamente diante da figura inerte do último membro que restara da velha guarda da companhia. Outras, conhecidas por sua frieza, olhavam com desconfiança para todos, elaborando teorias conspiratórias em suas mentes.

O sangue ainda escorria da poça que envolvia Anete. Lisa continuava debruçada sobre a adorada amiga, chorando e murmurando palavras ininteligíveis aos ouvidos mais aguçados. Sua tristeza era profunda. Alguém na platéia havia ligado para a polícia, quando a encenação macabra começou. Alguns agentes surgiram no teatro. Uns vinham do backstage, outros cobriam o saguão principal, e ainda outros já cercavam os camarotes cheios de ricaços abobalhados.

Fechou-se o pano.

Lisa foi arrancada de cima de Anete. Agora num misto de lágrimas e sangue, a atriz era levada até uma cadeira onde colocaram-na sentada e um policial gentil começou a perguntar coisas a ela.

– Eu a vi... – Sua fala doce, fora substituída por um tom amargo. – Eu a vi...

– A senhorita viu a vítima ser apunhalada? – O policial estava visivelmente transtornado por ter que fazer perguntas à dama em choque – Poderia identificar o agressor?

O brilho singular passou pelo olhar de Lisa quando ela voltou seus olhos diretamente para o policial. A doçura voltava à voz e suas palavras agudas tornaram-se sensíveis aos ouvidos do homem.

– Você é muito doce. Mas, eu não poderia identificar um possível agressor, já que não vi Anete ser apunhalada... Eu a vi... largada no centro do palco. Só isso e nada mais. – Virou então seu rosto e voltou a chorar. O momento de lucidez que o policial presenciara parecia ser apenas uma lembrança remota.

– Obrigado. Não vou incomodá-la mais – o agente redargüiu com gentileza, e retirando do bolso de sua jaqueta um lenço, entregou a ela. – Se a senhorita precisar de qualquer coisa, pode reportar-se diretamente a mim. Vou encarregar alguém de lhe trazer um copo com água e a acompanhar até seu camarim.

Ela olhou para o homem que se afastava com carinho e retribuiu a delicadeza com um pequeno sorriso. Ficou sentada, chorando por alguns minutos, quando um jovenzinho aproximou-se e disse agitado:

– Só pode ser para a senhora – olhou para Lisa – O tenente mandou entregar-lhe isto, com os seus cumprimentos e me pediu que a acompanhasse de volta ao seu camarim e me certificasse de que está tudo bem antes de deixá-la entrar – o rapaz retomou a fala quando Lisa olhou para ele. – Vou montar guarda em frente à saleta. Nada irá incomodá-la, nem mesmo eu, senhora.

A atriz olhou com doçura para o rapazote e se levantou do banco.

– Muito obrigada, querido.

Os dois caminharam lado a lado. Lisa destrancou a porta e o jovem entrou desconfiado, revistando todos os cantos da saleta e o banheiro. Dando-se por vencido, convidou a atriz para entrar.

– Estarei aqui – falou confiantemente olhando para ela e se virando, colocou-se em seu posto.

Lisa fechou a porta com um sorriso de satisfação. Virando-se, começou a despir as pesadas roupas. Vestiu o fino robe que estava delicadamente dobrado sobre sua poltrona. Caminhou até o banheiro, onde havia uma banheira. Ligou a torneira e aguardou. Colocou algo que fizesse com que espumasse e entrou na água.

Um homem mal encarado e meio sujo emergiu da porta que estava entreaberta. Lisa sem abrir os olhos, sorriu levemente. Depois, olhando diretamente para o homem amedrontado, disse com sua voz doce:

- Perfect timing, querido.

Conto elaborado entre Fevereiro e Abril de 2010.

4 comentários:

Mila. disse...

Legal o blog, amei.
www.candyspaceteen.blogspot.com

Anônimo disse...

Como teus contos são bem escritos, gosto de ler!

beijos!

Ceci disse...

vc escreve bem. vim aqi so pra conheçer o blog lindo
bj
http://ceciiribeiro.blogspot.com/

Mila. disse...

Muito legal o post e o blog amei. posta mais, to esperando *-*
www.candyspaceteen.blogspot.com