Em todo o mundo, o Islamismo é a
religião que mais cresce. Devido a atentados terroristas ligados a grupos
extremistas que praticam a fé, o Islam passou a ocupar um espaço que antes não
tinha na mídia e no imaginário popular. Mas, a confissão religiosa não pode ser
tomada como uma manifestação simplista que possui um cerne de identificação
entre todos os seus professantes. Esta é a opinião do professor Alberto da
Silva Moreira, doutor em Teologia Católica e pós-doutor em Ciências da
Religião. Atualmente, Moreira integra o corpo docente do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de
Goiás (PUC-GO). Confira o bate papo do Tribuna com o filósofo e teólogo.
Juliana Marton
Editoria de
Comunidades
Um estudo
recente da Pew Research Center, a pesquisa “The Future of World Religions:
Populations Growth Projetions, 2010 – 2050″, mostra que a religião muçulmana
alcançará o mesmo número de cristãos no mundo em 2050, e possivelmente, pela
primeira vez na história, vai predominar como a maior em 2070. Qual, na sua
análise, será o impacto desse crescimento no mundo? Poderá acirrar uma pretensa
disputa ocidente x oriente?
Como o estudo do Pew Center indica, a previsão de
forte crescimento do islamismo se baseia na alta taxa de fertilidade das
populações muçulmanas em países africanos e em alguns países asiáticos. Outro
fator previsto para tal crescimento é o aumento endógeno e por imigração dos
muçulmanos na Europa e na América do Norte. Tirar desses dados a conclusão de
que aumentará a disputa ocidente versus oriente, é imaginar que o islamismo ao
longo desse largo processo continuaria sendo um bloco igual em todas as partes,
não se transformaria, não se adaptaria e manteria sempre uma posição
beligerante em relação ao "ocidente". O que nós observamos hoje é o
contrário: há grandes divisões no mundo islâmico, há rivalidades fortíssimas
entre facções ou grupos sunitas e xiitas, entre sunitas entre si, mescladas com
conflitos entre tribos e grupos étnicos locais, como no Iraque e no
Afeganistão. Além disso, é preciso lembrar que o islamismo na Europa, por
exemplo, é muito diferente do islamismo praticado na Arábia Saudita e em outros
países do Oriente Médio. De certa forma, o islamismo já pertence a essa
categoria vaga, chamada "ocidente". Por outro lado, creio sim que o
crescimento islâmico em países da África como a Nigéria pode favorecer uma
agressividade maior de grupos fundamentalistas, como o Boko Haram, no sentido
de forçar a adoção de uma política estatal islamizante, ou seja a introdução da
sharia. Há um fator que não está claro nessas previsões e que pode alterar esse
quadro, para um lado ou para o outro: é o futuro do cristianismo ou do
islamismo na China, e mesmo na Índia.
Isso
significará um enfraquecimento do cristianismo?
Em termos demográficos e políticos, sem dúvida,
sobretudos nos países afetados pelos conflitos étnico-religiosos entre cristãos
e muçulmanos. Isso também vai afetar a política interna ou regional dos países.
Uma população muçulmana maior vai pressionar por maior representatividade,
maior presença na esfera pública, na mídia, maior acesso a políticas públicas,
financiamentos, etc. É o normal, como já acontece por exemplo na Alemanha. Mas
os países ditos "cristãos" ainda permaneceriam os mais poderosos em
termos de riqueza, tecnologia e poder militar. Aliás, o que significa
"enfraquecimento do cristianismo"? o termo "cristianismo" é
muito vago para englobar uma enorme diversidade de igrejas, credos, práticas e
teologias. O protestantismo branco clássico norte-americano (WASP) está bem
distante do catolicismo popular latino-americano ou africano. É preciso lembrar
que o cristianismo, assim como o islamismo, não tem uma instância central de
representação ou de controle. Os diferentes segmentos dentro deles não estão em
conflito apenas com entidades externas, mas entre si mesmos, dentro do próprio
campo religioso. Nesse sentido fica difícil uma igreja, ou mesmo o Papa, falar
em nome de todo o "cristianismo". Mas se essa polarização simplista
aumentar, sem dúvida o Papa vai ser pressionado para assumir um tipo de papel
de porta-voz do "mundo cristão"...
O presidente
da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) disse em Fátima distrito de Santarém,
que o cristianismo é a religião mais perseguida em termos globais. A
International Society for Human Rights, uma ONG de Frankfurt, na Alemanha,
estima que 80% da discriminação religiosa que acontece atualmente no mundo é
voltada contra os cristãos. De que forma essa perseguição pode alterar ou
impactar esse cenário?
Os principais responsáveis pela intolerância
religiosa e pela perseguição aos cristãos na África, no Oriente Médio e na Ásia
são os diversos grupos fundamentalistas, sobretudo islâmicos, mas também
hindus. Na Síria e no Iraque o Estado Islâmico e a Al Qaeda, na Nigéria e
Camarões o Boko Haram, no Afeganistão os Talebãs, nas Filipinas os diversos
grupos guerrilheiros islâmicos. Também há perseguição na Somália, no Sudão, na
Arábia Saudita, no Irã, no Paquistão, na India e até por parte do Estado na
Coréia do Norte. O fundamentalismo terrorista também é um resultado de
políticas colonialistas fracassadas da parte das potências ocidentais, desde o
desmoronamento do império turco em 1917 até hoje. O fundamentalismo religioso
não significa uma volta a um passado "medieval", é um fenômeno bem
moderno, é uma resposta equivocada à avalanche desenraizadora e arrasadora da
modernização capitalista. Mas na medida em que a cruel perseguição aos
cristãos, por exemplo na Nigéria, Síria e Iraque, se torna conhecida, e ganha a
grande mídia, isso pode fortalecer uma atitude de rejeição (simplista) de todo
o Islam, bem como justificar ataques de retaliação. Em contextos complicados,
de mudanças muito rápidas e polarização dos conflitos, a coisa mais fácil de
acontecer é encontrar bodes expiatórios, demonizar o outro como causa ou
representante dos males. Esta é exatamente a lógica seguida pelos
fundamentalistas.
Samuel
Huntington propõe uma teoria a que chama de choque de civilizações, que de
forma bem simplória, propõe que as identidades culturais e religiosas dos povos
serão a principal fonte de conflito. Este fenômeno analisado pela pesquisa pode
concretizar essa teoria, na sua visão? Qual a análise que faz disso?
Acho que a teoria de Huntington do choque de
civilizações é um tanto simplista; ela supõe que a modernidade ocidental é uma
conquista única da civilização ocidental, fundada na tradição do
Judeu-Cristianismo, e que por isso seria incompatível com outras civilizações,
que estão fundadas em outras tradições religiosas, como o islamismo ou o
confucionismo. Isso tornaria tais civilizações incompatíveis entre si e
condenadas a entrar em luta pela hegemonia global. Ora, o capitalismo, um
sistema socioeconômico, baseado na racionalidade instrumental, típica do
ocidente, foi assumido tanto por chineses, japoneses, como por russos,
indianos, sauditas e outros tantos povos que seguem outras tradições
religiosas. Não quero dizer que a religião e a cultura não tenham um papel
decisivo na reposição da identidade dos povos, mas que a variável religiosa é
insuficiente para esclarecer os conflitos pela hegemonia mundial. Há muitas
outras motivações menos nobres nessa geopolítica. Por exemplo, o acesso a
recursos naturais, a mercados, o controle de zonas estratégicas, etc. Por
exemplo, dentro do paradigma de Hungtington não dá para entender como os
Estados Unidos, de matriz cultural cristã, defensores da "livre"
iniciativa, do "livre" mercado e da democracia liberal cooperam e
compactuam há décadas com o regime da monarquia saudita, de matriz sunita superconservadora,
que implantou um regime autoritário e violento no país. E foi justamente desse
meio que surgiu o saudita Bin Laden e a Al Qaeda, que aliás até hoje é
fortemente financiada com recursos vindos de grupos político-financeiros da
Arábia Saudita.
Neste
sentido, acredita que as disputas religiosas podem ser responsáveis por uma
nova Guerra Fria?
As disputas religiosas raramente são apenas
religiosas, quase sempre envolvem outros interesses e motivos, reais ou
fictícios. A Guerra Fria aconteceu num horizonte histórico onde dois blocos de
países, claramente delineados e antagônicos, se enfrentavam. Aqui não creio que
se formem blocos de países, a realidade é muito mais porosa, instável e com
fronteiras políticas indefinidas. Afinal, conseguirá o Estado Islâmico na Síria
e no Iraque se afirmar como tal, como um estado? Qual o futuro do islamismo no
Irã, um país-chave no Oriente? Parece que ele se aproxima cada vez mais do
estilo consumista liberal, típico do "ocidente". Em todo caso,
acredito, sim, que os conflitos de origem religiosa ou mesclados com uma
justificativa religiosa podem contribuir muito para o aumento das tensões
mundiais no futuro próximo.
Uma dessas
situações de tensão já vem ocorrendo na Austrália, onde o coletivo Recuperar a
Austrália organizou uma série de protestos contra as manifestações extremistas
da confissão religiosa. Os manifestantes alegam não estar contra uma raça ou
religião, em particular. Mas, essa abordagem já trouxe efeitos negativos, como
contramanifestações da comunidade islâmica no país, acusando o coletivo de ser
antimulçumano. Essa pode ser considerada uma amostra de um cenário
internacional de conflitos entre identidades culturais, como descreve
Huntington?
Uma das consequências do processo de globalização é
a desterritorialização das religiões e o desenraizamento cultural generalizado,
que também reforça o seu oposto. É interessante notar que boa parte dos
militantes de organizações muçulmanas radicais vêm das populações de
imigrantes, que nos diferentes países não conseguiram ser integrados como
"francês" ou "inglês" ou como "australiano", em
pé de igualdade com a população "nativa", e por isso vivendo sempre
entre dois mundos, na indefinição da lealdade, da identificação, do
pertencimento. Nesses grupos a afirmação de pertencimento incondicional ao Islã
(violento) é uma constante. As políticas fracassadas de integração dos
migrantes contribuem fortemente para o surgimento de tais grupos. Não resolve
culpabilizar os migrantes por serem islâmicos e fortalecer a islamofobia, isso
só vai cobrar caro mais tarde.
Hoje, a
imagem que temos do Islamismo está muito ligada à abordagem midiática que traz
a vertente mais tradicional e extremista. Mas, a religião, em si, não está
necessariamente relacionada a isso. Acredita que o crescimento vai contribuir
para ampliar o conhecimento sobre a religião?
O respeito e a tolerância à diversidade religiosa
só vem com o conhecimento, e este é impossível sem a aproximação e o diálogo. O
Islam não é só e nem principalmente o talibã, assim como o Cristianismo não foi
só e nem principalmente a inquisição. Há também extremismos e fundamentalismos
dentro do Cristianismo, por exemplo contra as religiões afro-brasileiras, que
devemos enfrentar e combater. O Islamismo é uma religião que aparece a muitos
como simples e vantajosa, ela é extremamente portátil, o indivíduo pode levá-la
consigo a qualquer lugar, não é complicada e também prega a misericórdia e a
bondade, como a religião cristã. Não haverá paz no mundo sem que haja paz entre
as religiões, isso é certo. Portanto, está na hora de cobrar dos nossos líderes
religiosos o que estão fazendo e podem fazer a mais para diminuir a
intolerância e aumentar a paz entre as religiões.
Uma
reportagem recente do Le Monde, trouxe a perspectiva da religião no Brasil. Sob
o título "Feliz como um muçulmano no Brasil", o jornalista Nicolas
Bourcier explica que a religião tem atraído cada vez mais adeptos nos últimos
quinze anos. Além disso, ele lembra que "o primeiro país católico do mundo
é poupado pela islamofobia". Nesse contexto, você acredita que o Brasil
seria neutro numa situação de tensão internacional?
O Brasil tem uma formação religiosa sincrética,
simpática às religiões, tolerante e receptiva. Além do mais tem se posicionado,
a meu ver corretamente, sempre a favor da causa palestina e com simpatia pelos
países do mundo árabe. Nosso governo poderia fazer muito mais, tomar uma posição
mais firme nessa questão das minorias religiosas perseguidas no Oriente Médio e
na África; experimento a situação atual como neutra em excesso, ou seja, de
lavar as mãos. Não sei como um possível futuro governo de centro-direita
reagiria.
Segundo uma
pesquisa do instituto Gallup International, que entrevistou mais de 50 mil
pessoas em 57 países, o número de indivíduos que se dizem religiosos caiu de
77% para 68% entre 2005 e 2011, enquanto aqueles que se identificaram como
ateus subiram 3%, elevando a 13% a proporção dessa parcela. Qual será o papel
da não-religião nesse processo?
Segundo a mesma pesquisa que você mencionou no
início, do Pew Center, os sem-religião, embora aumentando muito nos Estados
Unidos, na Europa e talvez também no Brasil, em termos estatísticos mundiais
vão perder relevância, pois os fiéis das religiões vão crescer a taxas muito
mais altas até 2050. Mas os sem-religião definida, que só raramente se
confessam ateus, são muitas vezes pessoas que passaram pelo trânsito religioso,
fizeram a experiência religiosa e sabem prezar o respeito a cada tradição
religiosa e sobretudo à espiritualidade, que vai além da religião isolada. Tais
pessoas, também por seu nível de escolaridade, podem dar uma contribuição
valiosa no sentido de aproximar os diferentes grupos religiosos, favorecer o
diálogo e diminuir o preconceito existente nas religiões e na sociedade.
Entrevista produzida em abril de 2015 para o jornal Tribuna do Planalto
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